maracanaO título acima é de um texto primoroso publicado pela revista americana Sports Illustrated, que recentemente enviou ao Brasil o repórter Grant Wahl para cobrir os preparativos para a Copa do Mundo. Wahl fez o que todo repórter deveria fazer: viajou, conversou com pessoas na rua, entrevistou especialistas e membros do governo, analisou estatísticas, “sentiu o clima”. E premiou seus leitores com sua visão do que chamou de “dois Brasis”, confrontados entre a euforia do futebol e do populismo político e o desalento das diversas injustiças que nos castigam. Será que algum dia esses dois países conseguem se transformar numa nação de verdade? Confiram aqui uma síntese: 

         Se é que existem dois Brasis, um deles está aqui, num barzinho da Praça São Salvador, a alguns quarteirões da praia, no Rio de Janeiro. Vestindo uma camiseta cinza, óculos escuros e um anel caveira, Alan Fragoso, 27 anos, toma um gole de sua caipirinha. Ele era um publicitário que vendia produtos para a classe emergente do país. Um dia, decidiu parar. “O que quero mesmo é trabalhar com projetos em que acredito, não investir em consumismo”, diz.

         Fragoso entrou para uma startup que cresceu mais rápido do que o Facebook: os movimentos de protesto no Brasil. As manifestações de junho de 2013 começaram pequenas (e quase sem violência), em resposta a um aumento nas tarifas de transporte. Mas a polícia militar reagiu de forma exagerada, usando gás pimenta, balas de borracha e excesso de força, em frente às câmeras de TV que espalharam as imagens pelo mundo afora. Isso provocou protestos em massa contra uma série de problemas do país: corrupção no governo, baixos níveis de educação e saúde, remoção forçada de favelados e os gastos públicos (estimados em US$ 22,8 bilhões) com a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

         O dia 20 de junho foi o que Fragoso chama de “o melhor dia político da minha vida”. Ele se uniu a mais de 1,5 milhão de manifestantes irados que marcharam pelas ruas do Rio, São Paulo e outras 80 cidades brasileiras. Os protestos coincidiram com a Copa das Confederações, um “ensaio” para a Copa do Mundo. Dez dias depois, na final entre Brasil e Espanha, Fragoso estava à frente de outro grupo, com cerca de 5 mil manifestantes, seguindo para o Maracanã.

         “Os que estavam fora do estádio foram cercados e bombardeados com gás pimenta e balas de borracha”, recorda ele, que havia emprestado sua máscara antiga e naquele dia teve que cobrir o rosto com uma bandana umidecida com vinagre para enfrentar a fumaça. “Mesmo estando longe, o cheiro do gás chegou até dentro do estádio”.

         Ninguém sabe se os protestos (que terminaram com seis mortes) irão se repetir durante a Copa do Mundo. Desde junho, as manifestações têm sido menores, mas muitas vezes violentas, colocando frente a frente policiais e os anarquistas do Black Bloc. Mas agora, a quatro meses da Copa, Fragoso tem planos ambiciosos: 64 jogos, 64 protestos.

         

“Cantar o hino naquele dia

foi uma forma de demonstrar solidariedade

aos manifestantes das ruas,

não de se opor a eles.”

 

         O outro Brasil está aqui, num hotel de praia na Bahia, onde as emergentes classe média e média-alta passam cada vez mais tempo e gastam cada vez mais dinheiro. Certa noite, dois turistas americanos chegam ao restaurante do hotel carregando a Brazuca, bola oficial da Copa de 2014 produzida pela Adidas. É uma linda bola, com detalhes em azul, verde e laranja, e faz pensar por que o Brasil é o país do futebol.

         A bola é uma celebridade. Todo mundo quer tirar uma foto com ela: mães carregando seus bebês, pais com seus filhos de dez anos, um grupo de meninas que não para de rir e gritar. Também os funcionários do hotel querem posar com a Brazuca, segurando-a como se fosse uma amiga íntima. O chef, mesmo com seu uniforme de trabalho, brinca como se estivesse dançando com a bola. Todo mundo sorri, e não apenas quem é das classes endinheiradas.

         No dia seguinte, quando os dois turistas americanos levam a bola para conhecer o estádio da Copa, próximo a Salvador, até os trabalhadores da obra parecem encantados. Tratam a bola como um ídolo, juntando-se para uma foto com ela. Um mero passeio com Brazuca numa praça quase provoca tumulto.

         A FIFA diz que os brasileiros já adquiriram 7 milhões de ingressos e que a maioria é a favor do evento. “Existe algum receio de que o governo e os partidos políticos possam se beneficiar, e há uma atitude pessimista de alguns”, admite o ministro do Esporte, Aldo Rebelo. “Mas a grande maioria acha que a Copa e a Olimpíada serão ótimas para o país.”

         Se você perguntar aos brasileiros o que acontecerá durante a Copa, prepare-se para respostas bem variadas. “O Brasil é bipolar”, diz Mauricio Savarese, jornalista baseado em São Paulo que cobre política e esportes. “Você pode encontrar pessoas muito, muito entusiasmadas e outras muito, muito pessimistas”. Ele acha que pode haver alguns protestos, até com certa violência, mas duvida que atingirão os níveis de junho passado. Fora isso, nem ele nem ninguém acredita que a Copa pode não acontecer no Brasil. “Acho que tudo sairá razoavelmente bem. No final, as pessoas dirão ‘Bem, até que não foi tão ruim’. Pode até ajudar os políticos, como se eles tivessem feito um trabalho melhor do que realmente fizeram.”

         Outros analistas discordam. Juca Kfouri, decano dos jornalistas esportivos brasileiros, argumenta que haverá dois tipos de ambiente durante a Copa – um dentro dos estádios, alegre, e outro nas ruas, que estarão mais caóticas e agressivas do que em junho último. A razão, diz ele, é simples: a mair parte das reivindicações da população no ano passado não foram atendidas, e isso é particularmente desagradável considerando que o Brasil construiu estádios de alto padrão, muito superiores aos hospitais, escolas e sistemas de transporte.

         O que nos traz de volta à questão: como reconciliar os dois Brasis? Talvez seja impossível. Mas Kfouri está convencido de que a seleção nacional tem o poder de unir aqueles que estiverem dentro dos estádios com os que forem protestar do lado de fora. Enquanto as tensões tomavam conta das ruas em junho de 2013, algo fascinante acontecia sempre que a seleção brasileira jogava, na Copa das Confederações, especialmente antes da final contra a Espanha. O hino nacional brasileiro tem duas partes, mas antes dos jogos apenas a primeira era tocada nos estádios. Naquele dia, porém, o estádio lotado se uniu aos jogadores brasileiros para cantar a segunda parte sem acompanhamento, com uma energia que pareceu abalar até a cobertura do Maracanã.

         “Há coisas que a gente sente no ar”, diz Kfouri. “Você ouve e se arrepia. O hino naquele dia foi o combustível do estádio. Foi uma forma de demonstrar solidariedade aos manifestantes das ruas, não de se opor a eles. As duas coisas (patriotismo e protesto) são plenamente compatíveis.”

         Criticada por suas más atuações antes do torneio, a seleção brasileira abriu o placar logo aos 2 minutos da partida – foi a terceira vez em cinco jogos que o Brasil marcou nos primeiros dez minutos. O atacante Neymar, que havia agradecido aos manifestantes por lhe darem inspiração, foi brilhante mais uma vez. E vários órgãos de imprensa comentaram que aquele primeiro gol saiu ainda sob os efeitos do hino. “O hino havia perdido parte de sua importância como símbolo nacional por ser muito associado à ditadura”, diz Mauricio Barros, diretor da revista Placar. “Nunca tínhamos vivido uma experiência como aquela. Foi como se tivéssemos reconquistado nossos símbolos.”

 

“Justamente por ser torcedor,

me sinto mais determinado

ainda a questionar

a realização da Copa.”

 

         Surpreendidos diante dos eventos históricos de junho, tanto a FIFA quanto o governo brasileiro não perceberam uma verdade muito importante: para os brasileiros, é possível amar seu país, o futebol e a Copa do Mundo sem deixar de protestar contra a organização do evento. Ao conquistar o direito de sediar a Copa e a Olimpíada, pensava-se que o governo iria acelerar os planos de investir US$ 400 bilhões para melhorar a infraestrutura de aeroportos, estradas, metrôs e ônibus. No entanto, de 49 projetos previstos para conclusão antes da Copa, mais de um quarto foram retardados, cancelados ou reduzidos.

         A presidente Dilma Roussef prometera que um trem-bala ligando Rio e São Paulo (e seus aeroportos) estaria funcionando na época da Copa, mas a construção sequer começou. E sete anos após o anúncio de que o evento seria no Brasil, as reformas dos principais aeroportos continuam atrasadas. Na prática, o maior legado da Copa serão apenas os 12 estádios.

         A FIFA exigiu apenas oito estádios, mas o Brasil decidiu construir doze, por duas razões. A primeira, política, é que o partido de Dilma e do ex-presidente Lula queria premiar aliados em alguns estados, o que incluiu erguer um estádio em Manaus (cidade isolada no meio da Floresta Amazônica). O segundo motivo foi o turismo: o governo pretendia exibir aos turistas o máximo possível de cidades, num país que não está nem entre os vinte mais visitados do mundo.

         Embora tenham custado US$ 4 bilhões em dinheiro público, construções e reformas dos estádios não aconteceram de modo tranquilo. Seis deles não foram entregues a tempo, e seis operários morreram em acidentes durante as obras. E há os elefantes brancos: quando a Copa acabar, o que acontecerá com os estádios de Manaus (capacidade: 42.734 lugares), Brasilia (68.009) e Natal (42.086), cidades que nem possuem times nas principais divisões do futebol brasileiro?

         Christopher Gaffney, professor visitante de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal Fluminense, é um cidadão americano que passou os últimos cinco anos no Brasil, estudando os preparativos para a Copa e as formas como a memória cultural poderia ser preservada nos novos estádios. “Quanto mais as pessoas olham, mais vêem como tudo está deteriorado”, diz ele. “Elas percebem que as promessas não foram cumpridas, e agora nem sequer podem assistir a um jogo de seu clube, porque os preços dos ingressos subiram 50% este ano. São os ingressos mais caros do mundo, considerando o salário mínimo.”

         Gustavo Mehl, ativista social de 30 anos, mora próximo ao Maracanã. Cresceu indo assistir aos jogos com seu pai, carregando bandeiras e se misturando aos torcedores com seus cantos, coreografias e bumbos. “O Maracanã era um símbolo da participação pública no Rio”, diz ele. “Era o espaço mais democrático da cidade”. Mas o novo estádio, privatizado, não é o mesmo. Segundo Mehl, é muito mais caro, com acesso limitado para torcedores mais pobres, e a empresa hoje responsável deseja um comportamento “mais civilizado” por parte da torcida. “Esse novo Maracanã representa a morte cultural de nosso jeito de torcer. Se você é torcedor e participa de um movimento questionando a Copa, é uma contradição. Mas, na verdade, justamente por ser torcedor, me sinto mais determinado ainda a questionar a realização da Copa.”

         De fato, o novo Maracanã é de fazer inveja a alguns grandes clubes europeus. Sua reforma custou US$ 500 milhões, e depois o estádio foi privatizado através de um contrato de 35 anos com um consórcio liderado pela construtora Odebrecht. Gaffney diz que os organizadores poderiam ter gasto um quinto desse valor simplesmente reformando o sistema de drenagem do gramado e instalando novos assentos e camarotes. “Mas a forma como fizeram foi a mais invasiva, destrutiva e cara possível”, critica ele, lembrando que as autoridades tentaram até demolir o Museu do Índio. “Ameaçaram demolir também uma das melhores escolas públicas do Rio, vizinha ao Maracanã, e chegaram a destruir uma pista de atletismo que havia sido construída para os Jogos Panamericanos, em 2007. E isso numa cidade que irá sediar a Olimpíada. Só não o fizeram devido aos protestos de junho.”

         Os responsáveis, é claro, dizem que não. Para o ministro Rebelo, o Maracanã que era “a alma do Brasil” não existe mais. “Havia camarotes para os ricos e arquibancadas para os pobres, que assistiam aos jogos em pé. Os torcedores não podem ficar muito próximos do campo quando seus times são instrumentos de marketing. Há o risco de que o marketing elimine o encantamento que o futebol provoca no povo.”

 

“Quem está ganhando

com a Copa são só a FIFA,

os patrocinadores

e o governo.”

 

         Num ponto bem alto do Rio de Janeiro, não distante do Cristo Redentor, Santa Marta é uma das mais antigas favelas da cidade. Vitor Lira vive no alto do morro, representando a quarta geração de uma família que se assentou ali nos anos 1930. Santa Marta foi uma das primeiras favelas com UPP, e devido à intervenção do governo cerca de 6 mil moradores estão ameaçados de remoção. Um dos locais escolhidos para isso, a pequena favela Metrô-Mangueira, está sendo demolida para dar espaço ao estacionamento do Maracanã.

         “Estou na rua todos os dias resistindo à expulsão dos moradores de nossa favela”, diz Lira, durante um protesto no centro do Rio. “Esses grandes eventos são péssimos para nós, porque os pobres estão sendo expulsos desses planos de desenvolvimento e promessas de legado.”

         Os organizadores garantem que ninguém perderá sua casa em função das obras, mas os projetos urbanos exigidos pela FIFA já forçaram a remoção de milhares de pessoas em Porto Alegre, Recife e São Paulo, segundo Gaffney. Já Renato Cosentino, ativista da ONG Global Justice, conta que somente no Rio 65 mil pessoas perderam suas casas (os dados seriam da própria Prefeitura). “Os programas de remoção pagam valores ridículos, como US$ 1.250 por uma casa.”

         Lira aderiu ao Comitê Popular da Copa do Mundo e da Olimpíada, um grupo carioca que organiza eventos de protesto. Um desses eventos foi a “Copa dos Desalojados”, um torneio de futebol entre favelas ameaçadas de remoção. “Quem está ganhando com a Copa são só a FIFA, os patrocinadores e o governo”, diz Mario Campagnani, outro membro do Comitê Popular.”

         O que nos espera na Copa? Um fantástico gol de Neymar, Messi ou Cristiano Ronaldo? Uma grande festa, ou mais uma onda de protestos em massa de uma população revoltada? As manifestações de junho de 2013 mostraram que o Brasil é um lugar bem mais complexo do que a maioria imaginava. Existem dois Brasis. E, na medida em que junho de 2014 se aproxima, assistir a esses dois países interagindo será tão interessante quanto qualquer coisa que possa acontecer num campo de futebol.

        

*Texto publicado originalmente na revista Sports Illustrated. Clique aqui para ver o original em inglês.

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