Já escrevi aqui sobre Mino Carta, um dos maiores jornalistas brasileiros, que foi um de meus “gurus” no início da carreira. Mais recentemente, pensei escrever sobre as mudanças de rumo em sua trajetória, a partir da revista IstoÉ, que Mino fundou no final dos anos 70 e que teve papel importante na redemocratização do país e da imprensa brasileira. Lamentavelmente para quem o admirava, Mino passou a misturar o ofício jornalístico com as conveniências políticas de cada momento, a ponto de ter se associado ao ex-governador paulista Orestes Quércia, cujo nome será para sempre vinculado à mais nefasta corrupção estatal.

Bem, não preciso mais escrever. Reproduzo abaixo um artigo magistral, e demolidor, sobre o jornalista, escrito pelo prof. Demetrio Magnoli, da USP, colunista da Folha de São Paulo, O Globo e Globo News. Aí está, sem retoques, o perfil de um jornalista sem caráter, cuja publicação atual, CartaCapital, se transformou numa espécie de órgão oficial do PT – que, por acaso, vem a ser o partido que está no poder. Não tenho uma vírgula sequer a acrescentar:

Eu sei o que você escreveu ontem

“Os senhores escravocratas do século 21 ainda se movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (…)”, escreveu Mino Carta na revista “CartaCapital” do dia 2/4, para concluir: “Daí a oposição sistemática aos governos Lula e Dilma”. Na política, o passado é uma massa de modelagem sempre disponível para servir aos interesses do presente. Sugerir que os críticos do lulismo são reencarnações dos golpistas de 1964 já se tornou um clássico da “imprensa” chapa-branca. Quando, porém, a fábula emana do teclado de Carta, um cheiro de queimado espalha-se no ar.

Nos idos de 1970, Carta ocupava o cargo de diretor de Redação da revista “Veja” e assinava os editoriais com suas iniciais. O que M.C. escreveu em 1º de abril de 1970, sexto aniversário do golpe, está no acervo digital da revista:

“Propostos como solução natural para recompor a situação turbulenta do Brasil de João Goulart, os militares surgiram como o único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção (…). Mas, assumido o poder, com a relutância de quem cultiva tradições e vocações legalistas, eles tiveram de admitir a sua condição de alternativa única. E, enquanto cuidavam de pôr a casa em ordem, tiveram de começar a preparar o país, a pátria amada, para sair da sua humilhante condição de subdesenvolvido. Perceberam que havia outras tarefas, além do combate à subversão e à corrupção –e pensaram no futuro.” Fofo?

Enquanto Paulo Malhães lançava corpos em rios, M.C. batia bumbo para Médici. A censura não tem culpa: os censores proibiam certos textos, mas nunca obrigaram a escrever algo. Os proprietários da Abril não têm culpa (ou melhor, são culpados apenas pela seleção do diretor de Redação): segundo depoimento (nesse caso, insuspeito) de um antigo editor da revista e admirador do chefe, hoje convertido, como ele, ao lulismo, Carta dispunha de tal autonomia que os Civita só ficavam sabendo do conteúdo da “Veja” depois de completada a impressão.

Carta foi quercista quando Orestes Quércia tinha poder (e manejava verbas publicitárias). Hoje, é lulo-dilmista até o fundo da alma. Na democracia, não é grave ter preferências político-partidárias, mesmo se essas (mutáveis) inclinações tendem quase sempre na direção do poder de turno. Mas aquilo era abril de 1970, bolas! As máquinas da tortura operavam a plena carga –algo perfeitamente conhecido, não pelo povo, mas por toda a imprensa. A bajulação condoreira a Médici não deve ser qualificada como um equívoco de avaliação: era outra coisa, que prefiro não nomear.

“CartaCapital” de 2 de abril publicou, também, um ensaio histórico sobre as relações entre a imprensa e a ditadura no qual –surpresa!– não há menção aos editoriais da “Veja” assinados por M.C. em 1970. A revista de Carta faz coro com os arautos do “controle social da mídia”, eufemismo de censura em tempos de democracia. Cada um a seu modo, os grandes jornais acertaram as contas com o próprio passado, oferecendo desculpas (“O Globo”), reconhecendo erros (Folha) ou produzindo revisões circunstanciadas (“Estadão”). Carta optou por um caminho diferente: a camuflagem.

O artigo de Carta na “CartaCapital” é uma catilinária contra os “reacionários nativos” que, “instalados solidamente na casa-grande” e “com a colaboração dos editorialistas dos jornalões”, perpetraram o golpe de 1964. De tão santa e barulhenta, a indignação editorializada induzirá algum desavisado leitor estrangeiro a imaginar que o autor denuncia, corajosamente, um golpe militar em 2014. Mas, no fim, é mesmo do presente que trata o grito rouco, o adjetivo sonante e o chavão escandido: por meio dessas técnicas, Mino Carta esconde M.C.

Acervos digitais são uma dessas maravilhas paridas pela revolução da informação. A França do pós-guerra não tinha algo assim, para sorte dos colaboracionistas de Vichy. O Brasil de hoje tem. Sorte nossa.”

 

Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, ‘Gota de Sangue – História do Pensamento Racial’ (ed. Contexto) e ‘O Leviatã Desafiado’ (ed. Record). Escreve aos sábados na Folha de São Paulo (clique aqui ara ler o link no endereço original.

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