Quem não entrou na onda do “não vai ter copa” nem torceu para que tudo desse errado deve ter se extasiado com o que se viu até agora. E olhem que ainda faltam as duas semifinais e a final. Será que teremos mais bolas na trave no último minuto da prorrogação? Algum erro fatal de suas senhorias, os árbitros? Alguém invadindo o campo pelado? Mais mordidas? Golaços salvadores? Mesmo que nada disso aconteça, a Copa 2014 já entrou para a história. Há décadas não víamos jogos tão bons, torcidas tão alegres e coloridas. E, claro, quem assistiu pela TV foi agraciado com imagens que será difícil encontrar de novo.

Assim como os que torceram contra estavam extrapolando ao misturar futebol com política (velha tentação…), os que agora repetem palavras de ordem criadas pelo marketing oficial estão, na mais caridosa hipótese, vivendo uma ilusão à tôa. Por maior que seja, um evento como a Copa do Mundo não tem o poder de desestruturar um país, ainda que muitos gostassem que assim fosse. Nem pode servir para encobrir mazelas crônicas – e a queda do viaduto em BH nem é a mais grave delas. Como sempre, os brasileiros exageraram e exageram; talvez seja parte do “brazilian feeling”, expressão criada pelo jornalista holandês Simon Kuper, que veio cobrir o evento para o jornal inglês Financial Times.

Sob o título “Por que o Brasil já ganhou a Copa”, Kuper escreveu na semana passada uma bela crônica do evento, que tomo a liberdade de reproduzir abaixo. O repórter esteve em várias cidades e encantou-se com a forma como os brasileiros lidam com suas inúmeras dificuldades – ignorando-as e fazendo piada delas. Para ele, essa receita deveria ser transportada para todos os países que irão organizar copas no futuro. Daí o mote para o título, que alguns apressados logo trataram de replicar nas redes sociais como se o FT, um dos jornais estrangeiros que mais têm criticado nosso governo, tivesse se rendido ao charme e ao veneno da mulher brasileira, como dizia uma velha canção dos tempos da ditadura militar.

Não devem ter lido o artigo. Kuper simplesmente acha que futebol deve ser uma festa, mesmo com problemas de desorganização, e que o fato de ter havido tantos gols e tantos bons jogos nesta Copa retrata a globalização do esporte, que virou, acima de tudo, um espetáculo televisivo. Bingo! Sem patriotadas nem falso moralismo. Em sua homenagem, segue abaixo o texto, com votos de boa sorte para a Holanda na semifinal.

Por que o Brasil já ganhou a Copa?

Meu time, a Holanda, acabava de conseguir uma improvável vitória, e eu estava flutuando numa piscina em Brasilia. Pássaros tropicais cantavam nas árvores em volta, e meus amigos cantavam na água à minha volta. Foi então que tive meu momento eureka: das sete copas seguidas a que estive presente desde 1990, esta é a melhor. Como disse o treinador da Nigeria logo depois de ser eliminado: “Até agora foi tudo maravilhoso”.

         A tarefa agora é descobrir por que, e assim podermos guardar a receita do “sentimento brasileiro” e reusá-lo na Rússia em 2018 e no Qatar em 2022. O primeiro elemento é o futebol ofensivo. A maioria dos jogos nas Copas é chata. Assistindo a coisas horrorosas como Japão x Paraguai em Pretoria, em 2010, sempre pensei: “Por que alguém está assistindo a isso?” Mas ainda faltam dez jogos no Brasil, e já houve mais gols do que nas copas de 2006 e 2010.

         Minha teoria é que desde o início dos anos 1990 a transmissão ao vivo dos jogos pela televisão foi obrigando o mundo do futebol a criar conteúdos mais interessantes. Gradualmente, o jogo foi ficando mais ofensivo.

         A segunda razão é o Brasil. Em parte devido ao sol quente, especialmente depois do inverno que passamos na África do Sul em 2010; em parte por causa das praias. Quando você passa sua primeira tarde livre em 20 dias caminhando pela orla de Copacabana, fica achando que uma praia de primeira classe como essa deveria ser obrigatória em todas as copas futuras, assim como estádios de primeira classe. Isso é algo em que os alemães não pensaram em 2006.

         Um terceiro elemento que toda Copa deveria ter são os brasileiros. Se você mora em Paris, é desconcertante vir a um país em que quase todo mundo é simpático. Tive um choque cultural diferente no Japão em 2002: todo mundo era educado. No Brasil, até os policiais militares te dão um tapinha nas costas quando você passa (quer dizer, se você é um estrangeiro branco de classe média).

         De fato, os brasileiros estão me dando um curso grátis de um mês sobre como dominar a raiva. Se você tem temperamento ruim, como eu, ser um jornalista cobrindo uma Copa do Mundo pode fazê-lo explodir. Você raramente dorme. Vive sobrecarregado de trabalho. Está sempre passando por aeroportos e estádios, e sendo atropelado por milhares de outras pessoas, também estafadas, num centro de imprensa com excesso de iluminação.

         Alguns perdem a noção. Brigas nos centros de imprensa se tornam mais frequentes. Mas, ao se misturar com os brasileiros, você aprende a lidar alegremente com essas dificuldades. O taxi que você chamou para te levar rapidinho ao aeroporto não veio? Você está parado no congestionamento? Relaxa.

         Ver os jogadores em campo completa o curso de controle da raiva. Ali estão jovens rapazes que perdem o jogo mais importante de suas vidas, levam botinadas e até mordidas, e no entanto a maioria consegue se conter ao final e apertar as mãos dos adversários. Se fosse eu, devolveria a mordida… Aos poucos, estou descobrindo a solução para a maioria dos problemas humanos: fones de ouvido.

         Outro motivo de prazer: esta é uma Copa sem medo. As primeiras que cobri foram envolvidas pelo medo obsessivo dos hooligans. Lembro que quando tentei entrar na Italia, junto com dois amigos ingleses, para a Copa de 1990, os fiscais da alfândega não queriam nos deixar passar, alegando que podíamos ser hooligans. As Copas depois do 11 de setembro também foram assombradas pelo medo do terrorismo. E a de 2010 teve o clima de medo em relação à criminalidade sul-africana.

         O último conselho de minha mulher antes de meu vôo para o Brasil foi: “Não seja assassinado”. A taxa de assassinatos no Brasil é alta, embora eu ache que a coisa mais arriscada que se pode fazer aqui é dirigir. Mas tudo parece seguro nas áreas para turistas, normalmente cheias de policiais. À noite, Rio e São Paulo estão repletas de gente nas ruas; em Johanesburgo, tudo ficava fechado. Não sei se isso acontece porque Rio e São Paulo são cidades mais seguras, mas de qualquer modo é legal.

         Geralmente, os melhores momentos de uma Copa do Mundo acontecem quando você consegue dar uma escapadinha da Copa do Mundo. No início do torneio, fiz aquela que provavelmente terá sido minha única visita à Amazonia. Passei 30 horas lá, a maioria delas assistindo futebol em bares. De manhã, consegui dar um passeio a pé por Manaus. Virei numa rua industrial horrorosa e de repente, num beco sem saída, vi o grande rio. Um homem de calção estava de pé na água, lavando o cabelo com shampu. Galinhas passeavam sobre o lixo. Fiquei ali com eles uns cinco minutos e depois fui ver Inglaterra x Italia.

         Toda Copa é fascinante. O torneio dramatiza o papel da sorte na história, nos ensina a psicologia da mordida, oferece lampejos da genialidade humana, permite que investiguemos a alma coletiva uruguaia, e por alguns momentos cria uma conversa global. A única coisa que lamento é que o técnico uruguaio, Oscar Tabarez, estava errado quando disse que a imprensa britânica controla o mundo. Quem dera fosse verdade.

(c) Financial Times. Para ler o texto original, clique aqui.

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