Num país assolado pela falta de memória, o que para algumas pessoas é conveniente, há sempre a chance de voltar a cometer erros passados. Ou crimes. A piada é do humorista americano Emo Philips: “Queria pedir a Deus uma bicicleta. Mas, como sei que Deus não trabalha dessa forma, roubei uma bicicleta e depois fui pedir perdão a ele”. 

De certa maneira, é uma boa definição para essa mania bem brasileira, de fingir que nada tem a ver com o que está acontecendo, por exemplo, na política. Agora mesmo, muitos esquecem que, um ano atrás, o país era presidido por Dilma Roussef. Bem, “presidido”, como se sabe, é mera expressão de linguagem; era um trem desgovernado transportando milhões de passageiros e, no caminho, jogando alguns deles pela janela.

O (des)governo Temer tentou, aos solavancos, mexer com alguns mantras tipicamente brasileiros, como aposentadorias criminosamente infladas, máfias sindicais e subsídios que não param em pé. Conseguiu fazer cair a inflação, ainda que por força da recessão e do desemprego (que, aliás, começaram em 2013). Neste exato momento, ninguém sabe o que será daqui para frente. O processo de lavagem tem que continuar.

De todo modo, recuperar a memória é exercício necessário, e contínuo, sob pena de se achar que o país não precisa de reforma nenhuma e que tudo estava “sob controle”, como dizia Dilma na campanha de 2014. Fuçando em escritos e links do começo do século – sim, este mesmo, o 21 – encontro detalhes que me levam a uma, digamos, cronologia do impeachment, o processo que alguns chamam de golpe. Pelos dados disponíveis, a história, para ser bem contada, deve começar não em 2015, mas dez anos antes. Acompanhem, por favor:

2005 – O deputado Roberto Jefferson, do PTB, denuncia em entrevista o esquema que seria chamado “mensalão”, chefiado pelo chefe da Casa Civil, José Dirceu.

2006 – Em busca da reeleição, o presidente Lula organiza um novo esquema de apoio político. O eixo de financiamento da campanha passa para a Petrobrás, presidida pelo petista Sergio Gabrielli e com Dilma Roussef na presidência do Conselho. No final do ano, Lula se reelege derrotando no segundo turno o candidato tucano, Geraldo Alckmin.

2007 – Lula começa a planejar sua sucessão, atraindo o PMDB, maior partido da oposição. No auge da popularidade, muda a política econômica para aumentar os investimentos sociais. Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES são forçados a investir nas empresas “campeãs”, que puxariam o crescimento: Gerdau, Positivo, OAS, Oi/Telemar, Itaipava, Odebrecht e JBS/Friboi, entre outras. Estas duas últimas se tornaram as maiores financiadoras de campanhas políticas da história brasileira.

2008 – Lula dá um golpe de mestre ao reivindicar (e obter) os direitos de sediar a Copa do Mundo da Fifa, em 2014, e a Olimpíada, em 2016. Na euforia, o país começa a ser preparado para o “grande salto”, com ares de China, enquanto o mundo se debate com a maior crise econômica do pós-guerra.

2009 – Lula escolhe para sucedê-lo uma neófita em política, Dilma Roussef, ministra-chefe da Casa Civil e ex-comandante da Petrobrás. Odiada nos bastidores, inclusive dentro do PT, ela tinha o grande mérito de ser a primeira mulher presidente(a). Atrai o PMDB para uma partilha de poder imbatível nas urnas. E ganha um aliado chamado Michel Temer.

2010 – Dilma vence o tucano José Serra herdando a popularidade de Lula, com estatais e bancos públicos despejando dinheiro na economia e atraindo investidores estrangeiros. Foi a campanha mais cara da história, capitaneada pelo marqueteiro João Santana, discípulo de Duda Mendonça.

2013 – Pipocam as primeiras denúncias sobre um esquema de corrupção da Petrobrás, cuja diretoria havia sido nomeada por Lula (ou Dilma) a partir de indicações do PT, PMDB e outros partidos da base governista. Em junho, milhões de pessoas vão às ruas para protestar contra a corrupção.

2014 – Dilma atropela o PT e impõe sua candidatura à reeleição, contra a vontade de Lula, mantendo a aliança com o PMDB de Temer e fortemente apoiada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros. De novo, uma campanha bilionária, ancorada nos financiamentos das empresas “campeãs”. A candidata insistia que não havia crise, com ameaças de que tudo se perderia caso fosse derrotada. Mas foi uma vitória apertada: 54% dos votos válidos, contra 47% do tucano Aécio Neves. Logo após a reeleição, Dilma dá uma virada da política econômica, decisão que muitos consideraram “estelionato eleitoral”.

2015 – A crise se acentua, com queda nos investimentos, inflação em alta e desemprego. Surgem no Congresso vários pedidos de impeachment da presidente. Nos bastidores, Lula tenta costurar um acordo com Temer, Renan e o novo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. No final do ano, este aceita levar adiante o processo de impedimento, que aumenta a tensão política no país. Enquanto isso, aceleram-se as investigações sobre a Petrobrás, com a Operação Lava Jato trazendo revelações bombásticas, especialmente no campo do PT.

2016 – Dilma não consegue mais governar, sem apoio no Congresso, até que em maio é afastada pela Câmara, decisão confirmada em setembro pelo Senado. Assume seu vice, Michel Temer, em meio a enormes desconfianças e acusações de “golpe”. A Lava Jato agora atinge também integrantes do PMDB e boa parte dos empresários que financiaram as últimas campanhas eleitorais. Revela-se em detalhes a promiscuidade de grupos econômicos com os podres poderes Executivo e Legislativo.

Diante da presente interrogação para 2017, espero que tenha sido útil rememorar como chegamos até aqui. No mínimo, para evitar novas ilusões. Quem deu o tal golpe, se é que existiu? E quem dará os próximos? 

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