Como vem acontecendo há décadas, de tempos em tempos as Organizações Globo são acusadas por sua posição política. A diferença é que agora as condenações não se dão a propósito de alinhamento com o governo de plantão, como quase sempre ocorria, mas justamente pelo motivo oposto; de repente, parece que o grupo de mídia mais poderoso do país virou oposição!

É o que se revela nas entrelinhas dos discursos anti-Globo, desconfiados de que haveria algo por trás da cobertura jornalística. Se antes eram as esquerdas que demonizavam a emissora do Jardim Botânico, hoje o papel é desempenhado por tucanos e peemedebistas. Tudo porque foi o jornal O Globo que detonou a mais recente crise política, ao divulgar o conteúdo da já célebre gravação entre o presidente Temer e seu ex-amigo Joesley Batista.

Há um cheiro de inveja no ar: qual jornal ou revista não gostaria de ter sido o autor do “furo”? Mas esse é mero detalhe, que só interessa aos jornalistas. Vale mais tentar entender por que houve (se é que houve) uma mudança de postura na empresa dos Marinho. Sem deixar de registrar que, no episódio, as demais emissoras cumpriram seu eterno papel de figurantes, com quase nada a acrescentar, dando mais motivos para seus telespectadores trocarem de canal.

Aqui mesmo neste blog já apontamos, algumas vezes, como a liderança da Globo, realçada toda vez que um fato mobiliza a opinião pública dessa maneira, pode ser danosa para o país. Mas, sejam quais forem as métricas – entretenimento, refinamento da produção, qualificação de repórteres e apresentadores, tecnologia – a distância em relação aos outros grupos de mídia chega a ser constrangedora. E, se alguém neste momento fala em “monopólio”, é porque desconhece o funcionamento da mídia (especialmente a televisão) em países como Japão, México e Itália. Tema para outro artigo.

Com seu poderio, a Globo consegue cumprir uma lição de casa que talvez nem esteja nos sonhos dos concorrentes. Paga altos salários, não aluga seus horários, incentiva o aperfeiçoamento técnico de seus profissionais, contrata pesquisas e investe em experimentos de linguagem e de formato como poucas redes no mundo. Mesmo com a queda de receitas nos últimos anos, fenômeno multinacional e inevitável, mantém acesa a chama da criatividade, na condição de maior produtora de conteúdos da América Latina.

Há tempos o desafio da Globo deixou de ser a luta contra a concorrência, para se tornar algo bem mais complexo: manter-se forte na mente de uma nova geração de telespectadores que busca outros tipos de tela. É provável que 90% (se não mais) da população brasileira atual tenha crescido diante do plim-plim. Mas é igualmente plausível que metade desse contingente hoje não queira mais assistir TV no modo tradicional, a ponto de tornar o controle remoto um acessório quase descartável.

Pois bem, os irmãos Marinho perceberam isso há mais de dez anos, quando decidiram renovar todos os postos diretivos do grupo. Assumiu o comando uma geração de “profissionais de TV” que combina talentos técnicos com jornalistas e comunicadores egressos do marketing. Parte deles recebeu a missão de estudar as novas formas de mídia e as mudanças de comportamento do telespectador/leitor/consumidor. Nesse meio tempo, o grupo retirou-se do mercado de operação de TV por assinatura (até por força da nova legislação, para a qual, aliás, contribuiu decisivamente). E concentrou-se naquilo que sabe fazer melhor: produzir conteúdo.

O detalhe – que talvez tenha escapado aos críticos – é que as formas de distribuir conteúdo evaporaram ao sabor da internet e das tecnologias correlatas. Não basta produzir com qualidade; é preciso esse rigor também ao fazer chegar as produções ao distinto (e fragmentado) público. Se tanta gente critica a Globo há tantos anos, e ainda assim continua dando-lhe recordes de audiência na grade linear, significa que novelas, séries e jornalismo podem ser atraentes também nas segundas e terceiras telas, que fatalmente dominarão as próximas décadas.

Atentos, os executivos da Globo notaram que as disputas políticas podem interferir nesse cenário. Não deve ser agradável ver repórteres sendo agredidos por manifestantes, carros de reportagem incendiados e até cabines de transmissão de futebol hostilizadas. No entanto, cabe à mesma Globo desbravar os caminhos das novas mídias, colocando suas produções em cartaz na internet, ou via celular, às vezes até antes da estreia na rede aberta, ainda que seja apenas para “testar” o público. O que fazer se os outros grupos de comunicação se mostram incompetentes para isso?

Após a repercussão de sua cobertura nos escândalos do Mensalão e do Petrolão, com juízes se elevando à condição de “estrelas do vídeo”, a Globo registrou – em números – que a população estava cada vez mais interessada na cobertura política. As denúncias de corrupção, se encavalando umas às outras, não fizeram cair a audiência como acontecia no passado. E, como no mundo inteiro, políticos corruptos (e seus bajuladores, sempre por perto) se defenderam condenando a mídia. Continuam a fazê-lo, como é o caso do atual presidente. 

No entanto, falar em mídia no Brasil é falar da Globo. É valioso notar que o mesmo jornal O Globo foi o único, até esta data, a pedir em editorial a renúncia de Temer. Por seus meios, a sociedade mostrou que está com a mídia (ou com a Globo). Pode-se aqui acrescentar um saudável vice-versa: mais do que em qualquer época da história brasileira, a mídia está indo aonde o povo está. Questão de sobrevivência. É preciso desnudar os poderosos, tarefa que vem a ser a razão de ser do Jornalismo, seja ele analógico ou digital, impresso ou eletrônico, em regimes democráticos. É um longo e conturbado aprendizado para todos os lados que queiram, de fato, aprender. A emissora que outrora se acomodava às conveniências do poder percebeu que seu papel tinha de mudar. 

O país é outro. E, para o bem ou para o mal, isso só se vê na Globo.

2 thoughts on “Política da Globo mira na próxima década

  1. Muito bom, Orlando. Fica claro que a produção de conteúdo jornalístico de qualidade sempre irá incomodar alguém. Agora é a vez de tucanos e peemedebistas espernearem. Muito poderia ser dito sobre conteúdos, público-alvo, mercado publicitário, verbas federais, linha editorial etc. No nosso campo jornalístico, nada como aquela frase que conceitua o jornalismo como a atividade que consiste em separar o joio do trigo e…publicar o joio.

  2. Valeu, meu caro. Obrigado pelo comentário. Continuamos sempre aprendendo. Grande abraço!

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