Quando comentei aqui, semanas atrás, sobre as mortes de grandes nomes do jazz este ano em razão da COVID-19, não mencionei minha preocupação com o estado de saúde de Aldir Blanc, internado num hospital do Rio após ser diagnosticado com o vírus. Nesta 2a feira, acordei com a triste notícia: aos 73 anos, Aldir se foi, deixando a esposa Mari também infectada e internada.

Toda morte é triste – a de Moraes Moreira, mês passado, causou impacto por ter sido repentina, justamente ele que espalhou tanta alegria pelo país inteiro. Mas a de Aldir Blanc é particularmente significativa para minha geração. Foi ele o compositor brasileiro que mais se aproximou do gênio Noel Rosa no domínio das rimas, das gírias e do vocabulário do brasileiro médio, pobre e sem cultura formal. Tendo passado a infância em Vila Isabel, onde há uma estátua de Noel, sua família era de classe média e ele conseguiu formar-se em Medicina – que abandonou para se dedicar à música.

Soube como poucos unir erudição e sensibilidade (conhecia a fundo literatura, filosofia e psicanálise) para retratar personagens das ruas cariocas em versos que tinham ritmo próprio, quase dispensando as melodias de seus vários parceiros. Vejam este:

“Eu conheço uma assim,
Uma dessas mulheres que um homem não esquece
Ex-atriz de TV, hoje é escriturária do INPS
(Miss Suéter, gravação de João Bosco & Angela Maria, 1974)
 
Ou este:

“Na rua do Tijolo, bloco 5, aquele de esquina,

Morou uma enfermeira com a chama vital de Ana Karenina.

Dirá um dodói que Tolstói era chuva demais pra tão pouca planta.

Ô trouxa, heroínas sem par podem brotar na Rússia, ou lá em Água Santa…”

(Lupicínica, gravada pelo autor no álbum Vida Noturna, 2005)

 

Convenhamos: rimar “esquece” com “INPS” e “dodói” com “Tolstói” não é pra qualquer um. Foi Noel quem ensinou essas coisas, quase 100 anos atrás, e discípulos como Chico Buarque e Billy Blanco aprenderam divinamente. Mas Aldir foi mais longe, era capaz de proezas como esta:

“Aqui a Yoko rala um coco e joga ioiô
O Lennon veste um terno branco e é gigolô”
(Zen-vergonha, gravada por Beth Bruno e Guinga no álbum Simples e Absurdo, 1992)
 
Ou ainda:
“Olha, meu bem, o que restou daquele grande herói
Sem teu amor, enlouqueci e ando dodói
Como Tarzan depois da gripe…”
(Beguine Dodói, consagrada por Elis no disco Ela, 1979)
 
Qualquer antologia de letristas da MPB terá Aldir Blanc na comissão de frente, ao lado de Noel, Chico, Vinicius, Caetano, Gil, Lamartine, Paulo Cesar Pinheiro, por aí. Sua parceria com João Bosco lhe deu fama e dinheiro (bem menos do que merecia), graças a obras-primas eternizadas por Elis, como Dois pra lá, Dois pra Cá (“No dedo um falso brilhante, brincos iguais ao colar, e a ponta de um torturante band-aid no calcanhar”); Caça à Raposa (“Línguas rubras dos amantes, sonhos sempre incandescentes recomeçam desde instantes que os julgamos mais ausentes; a recomeçar, recomeçar como canções e epidemias”); Cabaré (“Um cuba-libre treme na mão fria ao triste strip-tease da agonia; de cada um que deixa o cabaré, lá fora a luz do dia fere os olhos”) e a inesquecível O Bêbado e a Equilibrista (“Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente: a esperança dança, na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar…”
Poderia aqui escrever longamente sobre os mais de 600 poemas musicais que deixou – alguns estão neste link do Spotify; e, neste outro, sua obra completa conforme registrada no Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira. E ainda falar de seus vários livros, em que a alma brasileira era assunto prioritário, ou de suas crônicas deliciosas em jornais e revistas; ou ainda suas incansáveis iniciativas em defesa da cultura e dos músicos brasileiros. Paris: de Santos Dumont aos Travestis, que era “apenas” um poema e ao ser musicado por Moacyr Luz ganhou brilho na voz de Rosa Passos em 1992, contém pérolas como esta: “Paris, uma loura envolta em negligée, ton-sur-ton e degradé, o meu francês é meio assim, jabaculê”. 
No fim de semana retrasado, o eterno parceiro João Bosco prestou a derradeira homenagem a Aldir, já então isolado no hospital: uma live que serviu para antecipar o disco que ambos preparavam lançar este mês e que incluiria até DVD (vejam aqui: o som é ruim, mas abre com um dos versos mais conhecidos da dupla: “Tá lá o corpo estendido no chão”, de De Frente pro Crime). O projeto deve atrasar, claro. Mas certamente irá fechar de modo sublime a trajetória de um artista que interpretou tão bem seu povo e sua época.

1 thought on “Gigante da alma brasileira

  1. Excelente texto, rico em detalhes, uma aula sobre um gênio da nossa música. Parabéns Orlando Barroso!

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