Levei um susto na primeira vez que visitei Berlim, ao descobrir o Memorial do Holocausto (foto). Como alguém podia querer homenagear episódio tão horrível da História? Bastaram alguns minutos caminhando em meio àqueles blocos de concreto para entender: o local foi erguido não como tributo aos nazistas assassinos, mas para fazer os visitantes perceberem – com um frio na barriga – o que foi o horror daquele período.

Berlim, nesse sentido, é quase uma aula de história a céu aberto. Pode-se ver e tocar pedaços do fatídico Muro, por exemplo, ou visitar o Museu da Stasi, a sinistra polícia secreta da Alemanha Oriental comunista, e tudo que sentimos é tristeza pelas vítimas – jamais admiração por seus carrascos. Idem diante da Igreja da Memória (Gedächtniskirche), cuja cúpula foi queimada por bombardeios durante a 2a Guerra. Em lugar de demolir ou restaurar, preferiram manter o prédio como ficou, chamuscado, para que todos saibam o que pode produzir uma guerra.

É assim que se aprende a história para não repeti-la, como bem ensinou o grande pensador inglês Edmund Burke. E, no entanto, em vários países há hoje grupos destruindo estátuas e monumentos ligados a episódios históricos. Começou com os protestos anti-racismo nos EUA pelo assassinato cruel de George Floyd, descambando em agressões a estátuas de figuras ligadas à época da escravidão e até de Cristóvão Colombo, oficialmente o descobridor da América; em Londres, um gaiato violou a estátua de Winston Churchill, maior herói político do país, sob a alegação de que ele maltratou habitantes das colônias britânicas por onde andou. Diz o jornalista Jamil Chade, do UOL, que já existe até uma “lista negra” de estátuas a serem destruídas no Reino Unido.

Nesse ritmo, todos os países que um dia tiveram colônias – a maioria europeus – terão que derrubar suas estátuas, mudar nomes de ruas, praças e museus. Não deve ocorrer a essas pessoas estudarem um pouco de História para verificar, por exemplo, que Gandhi, o grande líder da libertação da Índia, foi antes um convicto colaboracionista dos exploradores britânicos. Ou que Chaplin, talvez o maior artista do cinema em todos os tempos, maltratava suas mulheres e seus empregados. Shakespeare, Lincoln e Aristóteles são outros “racistas” famosos, como bem lembra Helio Schwartsman na Folha de São Paulo.

Aqui no Brasil, já se pretendeu, tempos atrás, censurar livros de Monteiro Lobato, Mário de Andrade e até, vejam só, Machado de Assis por supostamente admitirem o racismo. Mesmo argumento usado pela HBO para retirar de seu serviço de streaming o filme E o Vento Levou, que se passa no século 19 no sul dos EUA, onde os negros eram quase todos os escravos. 

Essas tentativas de reescrever a história com os olhos de hoje, além de ridículas, são perfeitamente inúteis. Impedir as novas gerações de verem um filme não as fará mais nem menos racistas, assim como deixar de assistir a corridas de F1 não transforma alguém em melhor ou pior motorista.

Filmes, livros, quadros e monumentos são uma forma de se conhecer – e portanto entender – o mundo em que calhamos de viver. Destruir estátuas e monumentos foi o que fizeram os comunistas russos após matarem o czar e sua família, em 1917, achando que com isso “matariam” também a história do czarismo. E foi também o que se viu 70 anos depois, quando estátuas de Lênin e Stálin vieram abaixo após o fim da União Soviética.

E, vejam, nada disso impediu que surgisse um tirano como Putin. Que logo terá uma estátua em sua homenagem em Moscou. Se é que já não tem.

1 thought on “A culpa é das estátuas

  1. Excelente texto. Parabéns pela clareza. Em tempos de mídias e textos (independente da fonte) tão pobres em conteúdo, é reconfortante ver que o velho amigo continua afiado. Grande e forte abraço. 🙂

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