FOTO: Tiago Queirós/Estadão

 

Entre as grandes vítimas deste trágico ano de 2020, podemos incluir uma senhora chamada “Música”.  Tivemos Aldir Blanc, Moraes Moreira e Ennio Morricone, entre outros.

 

Mas o velhíssimo chavão “o Brasil ficou mais pobre” raramente coube tão a propósito quanto na morte de Zuza Homem de Mello, o maior crítico, pesquisador e educador musical brasileiro, falecido neste domingo. Conheci-o nos anos 70, na redação do Estadão, quando já era fã de seu programa de todas as tardes na rádio Jovem Pan e sabia apenas uma pequena parte de seu vasto currículo.

Sempre que morre um artista já aposentado, é comum ver na mídia expressões como “perda irreparável” ainda que todos saibam que o falecido já havia encerrado sua carreira e, portanto, não tinha mais muito que oferecer. No caso de Zuza, a expressão é perfeita. Zuza era único, simplesmente insubstituível, não há ninguém com sua bagagem, que inclui ter conhecido pessoalmente alguns dos maiores músicos de todos os tempos. 

Neste domingo, perdemos (mesmo) um artista que, apesar de seus 87 anos, dos quais quase 70 como profissional de música, estava sim em plena forma e ainda iria nos dar muito. Na semana passada, ele acabara de escrever uma biografia de João Gilberto (a sair ainda este ano) e de produzir a série de vídeos Muito Prazer: Meu Primeiro Disco, que começa com Gilberto Gil contando a história de seu LP de estréia, de 1967.

Ver e ouvir Zuza falar sobre música, além de ser sempre um enorme aprendizado, é cativante pela vivacidade “de jovem”, que ele manteve até morrer. Vejam qualquer um das dezenas de vídeos seus com entrevistas, comentários, aulas e conferências que estão na rede. Pode-se conferir ali o mesmo entusiasmo do rapaz que, aos 23 anos, pôde assistir ao vivo, nos EUA, lendas como Billie Holiday, Duke Ellington, John Coltrane, Thelonius Monk e tantos outros. E que, aos 30, praticamente inventou a captação de áudio ao vivo em shows musicais na TV Record – foi ele o primeiro a colocar microfones no meio da plateia, para registrar o ambiente dos lendários festivais de música dos anos 60 e de programas históricos como “O Fino da Bossa” e “Jovem Guarda”. 

Com a música nas veias, como gostava de dizer, Zuza apurou a arte de escrever sobre jazz e MPB em jornais e revistas, e apresentou esses gêneros a toda uma geração através de seus programas de rádio. Superava de longe os críticos tradicionais por seu conhecimento de causa: era contrabaixista profissional, tendo estudado com os mestres Ray Brown e Dizzy Gillespie. Posso afirmar – pois aprendi com essas leituras – que Zuza não escrevia críticas; dava aulas em forma de comentários, nunca caindo no velho esquema “isso é bom, aquilo é ruim”. Seus textos explicam melodias, harmonias, ritmos e andamentos de forma tão didática quanto ao falar de história musical e detalhar técnicas de gravação.

Quando o Brasil entrou na rota dos grandes astros internacionais, a partir dos anos 70, Zuza foi ser curador de eventos como o Festival Internacional de Jazz, que teve a primeira edição (1978) transmitida pela TV Cultura/SP, as séries Free Jazz e TIM Jazz, os Festivais de Verão do Guarujá, O Fino da Música e diversos eventos no SESC, Itaú Cultural, Casa do Saber e Instituto Moreira Sales, entre outros. Em meio a todas essas atividades, ainda encontrou tempo para pesquisar e produzir livros e enciclopédias sobre a música brasileira, destacando-se “A Canção no Tempo”, em parceria com o historiador musical Jairo Severiano, e “A Era dos Festivais”.  

Destoava também de outros críticos e intelectuais pela fineza, gentileza e simpatia, qualidades que demonstrava tanto no trato com colegas e alunos quanto com artistas, fossem iniciantes ou consagrados. Descobriu e orientou uma infinidade de músicos e intérpretes, sem nunca deixar de ser sincero. Não à tôa, só deixa amigos nesta sua despedida.  

Para quem quiser penetrar nas veias deste grande brasileiro, esta série da Rádio Batuta é um ótimo ponto de partida. 

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