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Da intolerância ao “cubismo”

Agora que a perigosíssima ativista cubana Yoani Sanchez foi embora, imagina-se que o clima esteja mais sereno para discutir esse triste episódio da história recente do país. Amigos que moram no Exterior me perguntam o que, de fato, aconteceu. Que insondáveis razões teriam levado alguns jovens a se manifestarem de forma tão agressiva e intolerante contra a moça? Quem teria sido o gênio do marketing que elaborou tão minucioso plano de ação, envolvendo perseguições a ela em quase todas as cidades que visitou (a única exceção foi justamente a última, o Rio de Janeiro) e, simultaneamente, uma saraivada de comentários ofensivos nas redes sociais? Qual o propósito de transformá-la, de obscura blogueira, em celebridade nacional, quiçá internacional, em dois ou três dias?

Já li e ouvi as mais variadas justificativas e ilações, que vão de um plano arquitetado pela CIA (de quem Yoani seria agente) ao início da campanha eleitoral de 2014. Confesso que não consigo enxergar conexões entre esses fatos. Em São Paulo, a moça foi simplesmente impedida de responder a perguntas que lhe faziam, a ponto de ser necessário cancelar o evento a que fora convidada. Na Bahia, invadiram aos gritos um cinema onde seria exibido um documentário, com Yoani na plateia, como se da tela fossem sair contra-revolucionários para tentar um golpe de estado. No Congresso Nacional, os manifestantes não agrediram nem ofenderam Sarney, Renan e seus pares (no que certamente seriam apoiados por toda a população), mas apenas a visitante, que estava ali simplesmente a convite da Casa.

Curiosamente, a acusação mais comum que vi contra Yoani foi a de que a CIA estaria bancando sua viagem. Seria estranho, sem dúvida, a agência gastar seus dólares com uma “agente” que nada tem de secreta e que, na prática, não precisaria desse financiamento: a moça veio ao Brasil a convite do jornal O Estado de S.Paulo, após longas negociações para que o governo cubano a deixasse sair do país, e, mesmo que assim não fosse, já arrecada um bom dinheiro com sua militância internacional contra a ditadura cubana.

Também achei curiosa, nesse episódio, a postura do governo brasileiro, que em 2007, durante os Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, negou asilo político a dois pugilistas cubanos e mandou devolvê-los sem dó à ditadura de onde tentavam fugir; e que, em 2009, concedeu o mesmo asilo ao criminoso italiano Cesar Battisti, condenado em seu país por assassinato, desrespeitando assim um longo histórico de cooperação diplomática com a Itália. No caso de Yoani, a opcão do governo brasileiro foi distribuir um “dossiê Yoani” a jornalistas, num concubinato entre o embaixador cubano em Brasilia e um funcionário da Casa Civil. Dossiê, por sinal, já conhecido há anos.

Mas, pior mesmo foi constatar que os brasileiros, após lutarem anos contra uma ditadura, não estão preparados para uma verdadeira democracia. Tristemente, os anti-Yoani me fizeram lembrar agentes do governo militar brasileiro que, nos anos 1970, ao entrar na casa de um amigo jornalista, então foragido, foram procurar em sua biblioteca as “provas” de sua militância comunista. Depois de revirarem as estantes, levaram apenas um exemplar de “O Cubismo”, colorido livro sobre pintura.

Alguns dos vândalos que protestaram contra a blogueira, se pudessem, implantariam aqui algo como a “liberdade” que existe em Cuba. Ou na Venezuela. Provavelmente, são incapazes de localizar a ilha num mapa-mundi. E, se um dia abriram algum livro a esse respeito, deve ter sido “O Cubismo” – para ver as fotos.

Orlando Barrozo

Orlando Barrozo é jornalista especializado em tecnologia desde 1982. Foi editor de publicações como VIDEO NEWS e AUDIO NEWS, além de colunista do JORNAL DA TARDE (SP). Fundou as revistas VER VIDEO, SPOT, AUDITÓRIO&CIA, BUSINESS TECH e AUDIO PLUS. Atualmente, dirige a revista HOME THEATER, fundada por ele em 1996, e os sites hometheater.com.br e businesstech.net.br. Gosta também de dar seus palpites em assuntos como política, economia, esportes e artes em geral.

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