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Memórias em transe

Pessoas que nunca viveram numa ditadura têm o direito de achar que talvez, quem sabe, até se poderia aceitar alguma perda de liberdade, em troca da “solução” de problemas como miséria, corrupção, criminalidade etc. Talvez. Mas é triste ler e ouvir de gente com mais de 50 anos – e que, portanto, sentiu na pele (se é que estavam acordados) a truculência do regime militar brasileiro – elogios a Cuba, Venezuela e Irã, como se fossem exemplos de democracia.

Nos últimos anos, com a insana disputa entre PT e PSDB, comentários desse tipo tornaram-se comuns, rebaixando o debate político a uma reles discussão de botequim (e me desculpem os donos de botequins). Para quem acha tudo isso natural, e até desejável, nada como um banho de história, principalmente se for a história do país (bem) contada por seus protagonistas. É o caso do documentário Tropicália, recém-lançado em DVD e Blu-ray, que se propõe a relatar o movimento tropicalista, que chacoalhou o Brasil nos anos 1960, em plena ditadura militar. Quem conseguir assisti-lo sem travas nos olhos e nos ouvidos há de perceber que muito do que aconteceu entre 1967 e 1972 tem a ver com os fatos atuais, embora o contexto seja completamente diverso.

Uma breve sinopse: o tropicalismo começou como um movimento musical, liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, que propunha uma abertura às influências estrangeiras, notadamente o rock (americano e inglês) e a música latina, mas ao mesmo tempo resgatando manifestações típicas do país, como os ritmos nordestinos e a música caipira. Caetano e Gil queriam integrar a então chamada “música jovem” (representada por Roberto Carlos e a Jovem Guarda) com a bossa nova, o baião, o samba de origens afro e a poesia concreta, incorporando Beatles, Hendrix etc. Foi um movimento tão forte que ganhou as telas da televisão e atraiu artistas e intelectuais do cinema, teatro, artes plásticas. Tudo isso em 1967, quando ficava claro que o governo militar instalado em 64 não pretendia permitir a volta da democracia.

Como diz o cantor e compositor Tom Zé a certa altura do filme, “na ditadura pensar é proibido”. Mais do que perseguir inimigos políticos, o governo militar parecia incomodado com o fato de um grupo de artistas querer estimular o povo a pensar, e de usar para isso seu enorme talento. O documentário, dirigido brilhantemente por Marcelo Machado e co-produzido por Fernando Meirelles, mostra como a sociedade brasileira não entendeu a mensagem dos tropicalistas, embora adorasse suas músicas. E, na mão inversa, relata como o grupo não captou os sinais de que o conservadorismo era (acho que ainda é) um valor quase sagrado para a maioria da população brasileira. Rogerio Duarte, escritor e um dos mentores do movimento, resume bem a situação em seu depoimento: “Como diríamos na linguagem atual, para nós não caiu a ficha.”

O roteiro do filme amarra habilmente os depoimentos a sons e imagens da época (a morte de Che Guevara, as passeatas estudantis, ídolos da TV como Chacrinha e filmes como Terra em Transe, de Glauber Rocha, e O Bandido da Luz Vermelha, de Rogerio Sganzerla) e ícones do Brasil (Getulio, Carmen Miranda), o que na tela vale como um imenso caldeirão tupiniquim. Mostra o início das carreiras de Gal Costa, Maria Bethania e Os Mutantes, em contraponto à morte do estudante Edson Luis, no Rio, episódio marcante da luta contra a ditadura. Funde efeitos sonoros usados em músicas tropicalistas com sons “da rua”, captados em gravações inéditas, que a equipe de produção conseguiu encontrar. Recupera o famoso discurso de Caetano na PUC-SP, em 15 de setembro de 1968, vaiado ao cantar sua simbólica “É Proibido Proibir”, dias depois da invasão de um teatro que exibia a montagem de O Rei da Vela, peça iconoclasta de Oswald de Andrade encenada por Zé Celso Martinez Correia. “Mas é isso que é a juventude deste país?”, pergunta Caetano, revoltado. “Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos.”

Como se sabe, o tropicalismo acabou de forma melancólica logo após o AI-5, em dezembro de 68, quando Caetano e Gil foram presos, depois exilados. Ao voltarem, em 72, tinham a recomendação de se manter calados, preço que tiveram de pagar para encerrar o insuportável exílio. O documentário fecha com depoimentos atuais dos dois, e também de Tom Zé (que faz, a seu estilo, uma primorosa análise do que o movimento significou), Rita Lee, Arnaldo e Sergio Baptista (os Mutantes). Emocionantes as imagens de Gil e Caetano, em backlight, assistindo num telão a cenas em preto-e-branco da época, e cantarolando trechos de “Back in Bahia”, música de Gil que é uma espécie de “hino da volta”.

Se faltou alguma coisa ao documentário, talvez tenha sido um ou dois depoimentos de quem estava “do outro lado”, quem sabe algum desses militares aposentados que detestam pensar e só sabem obedecer. E não deixa de ser irônico o fato de que o filme, da produtora Bossa Nova Filmes, foi todo financiado com dinheiro público. Os patrocinadores listados nos letreiros são Petrobrás, BNDES, governo da Bahia… Os petistas devem achar que é uma produção “contra a ditadura”. Na verdade, é a favor de um outro Brasil, um Brasil que pensa, e que, pelo menos por enquanto, ainda não existe.

Orlando Barrozo

Orlando Barrozo é jornalista especializado em tecnologia desde 1982. Foi editor de publicações como VIDEO NEWS e AUDIO NEWS, além de colunista do JORNAL DA TARDE (SP). Fundou as revistas VER VIDEO, SPOT, AUDITÓRIO&CIA, BUSINESS TECH e AUDIO PLUS. Atualmente, dirige a revista HOME THEATER, fundada por ele em 1996, e os sites hometheater.com.br e businesstech.net.br. Gosta também de dar seus palpites em assuntos como política, economia, esportes e artes em geral.

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