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Governo regulador, agências falidas

Já dizia o grande Millôr: “Democracia é quando eu mando em você; ditadura é quando você manda em mim.” Pois é, esse deve ser o conceito de democracia que vigora em Brasilia. A última novidade na matéria é a intenção do governo de reformular as agências reguladoras, como mostra reportagem de hoje na Folha de São Paulo. Entre elas, claro, está a nossa Anatel, uma das campeãs em reclamações por maus serviços prestados.

Antes de entrar nos méritos e deméritos da Anatel, é bom lembrar – para quem talvez tenha esquecido – como nasceu essa história de agência reguladora. É um modelo copiado de países do Primeiro Mundo, como EUA, França, Japão e Inglaterra, e implantado no Brasil no governo FHC. A ideia é que cada agência seja independente das questões políticas e mantenha quadros técnicos de comprovada competência, bem remunerados, para executar os planos elaborados pelo poder executivo e teoricamente aprovados pelo legislativo. Seus diretores devem ter mandato definido e maior que o do presidente da República, para não serem trocados a toda hora e conseguir praticar políticas de longo prazo. É um instrumento importantíssimo de auxílio aos governantes, especialmente em áreas estratégicas como as ligadas à infraestrutura. No Brasil, foram criadas – além da Anatel – Aneel (energia), Anac (aeroportos), ANS (medicamentos), ANP (combustíveis) e assim por diante.

Por ter sido uma ideia adotada no governo tucano, o presidente Lula, quando assumiu, optou por retirar os poderes das agências. Foi um caso típico de “arrasa-quarteirão”, comum na política brasileira. “Se foi o outro que fez, vamos acabar.” Algumas agências foram simplesmente escanteadas, sem verbas nem apoio; outras foram usadas para acomodar interesses dos partidos da famosa “base aliada”. Os cargos foram loteados e, com isso, abandonados os critérios originais de independência e comprovada competência. Para presidente da ANP, por exemplo, foi escolhido o líder do PCdoB, que talvez nunca tenha sequer abastecido seu carro num posto. Na Anvisa, foram alocados sindicalistas sem qualquer relação com a área médica. Na Anac, nem é preciso lembrar: a quantidade de escândalos, as filas nos decadentes aeroportos e o velho “relaxa e goza” da ex-ministra Martha Suplicy falam por si.

No caso específico da Anatel, o que temos visto nestes dez anos (e várias vezes comentamos aqui) são verdadeiros disparates. Quando era dirigida pelo falecido Renato Guerreiro, havia na agência a preocupação de recrutar e/ou formar quadros técnicos capazes de dar conta do enorme desafio que era melhorar os serviços de telefonia. Com a privatização, estatais desmoralizadas como Telesp, Telerj e Embratel (na sua versão original) passaram às mãos de grandes grupos com dinheiro e interesse para investir, mas que precisavam ser fiscalizados. Quem hoje ainda critica as privatizações é porque não viveu (ou levianamente esqueceu) a época em que demorava-se três, quatro anos para obter uma linha telefônica fixa (a tecnologia celular ainda era novidade).

Criada em novembro de 1997, a Anatel foi sendo desmontada a partir de janeiro de 2003, trocando cargos técnicos por indicações políticas. A consequência foi que, a partir daí, não houve mais fiscalização digna desse nome. As grandes operadoras puderam agir à vontade, às vezes até com financiamento do BNDES (como comentamos ontem), e a demanda só aumentou. O país tem hoje cerca de 250 milhões de linhas de celular, cujo serviço é precário, para dizer o mínimo.

A solução que o governo apresenta, dez anos depois, é cobrar “mais produtividade” e “mais transparência” das agências, segundo um assessor da presidente Dilma, que considera ter sido um erro a transferência para elas do chamado poder concedente; este agora será devolvido aos ministérios. Em outras palavras: mais barganhas políticas nas concessões de portos, aeroportos, estradas, planos de saúde e, é claro, operadoras de TV e telefone. Afinal, estamos às vésperas de mais uma eleição, certo?

Como não existe oposição no país, a tendência é que esse plano diabólico seja levado adiante sem maiores traumas. Se você, contribuinte, está preocupado porque seu telefone não funciona, a conexão de banda larga cai a toda hora, as estradas estão cheias de buracos e vive faltando luz em seu bairro, isso é problema seu, não do governo. Pelo menos, não deste governo.

Orlando Barrozo

Orlando Barrozo é jornalista especializado em tecnologia desde 1982. Foi editor de publicações como VIDEO NEWS e AUDIO NEWS, além de colunista do JORNAL DA TARDE (SP). Fundou as revistas VER VIDEO, SPOT, AUDITÓRIO&CIA, BUSINESS TECH e AUDIO PLUS. Atualmente, dirige a revista HOME THEATER, fundada por ele em 1996, e os sites hometheater.com.br e businesstech.net.br. Gosta também de dar seus palpites em assuntos como política, economia, esportes e artes em geral.

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