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O fim de uma máfia brasileira

Se alguém acredita que o Brasil pode ser um país melhor, teve mais um motivo para festejar na semana passada. O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que existe para garantir os princípios da concorrência comercial e da defesa do consumidor/contribuinte, condenou o Ecad (curiosamente duas siglas tão parecidas, e tão diferentes…) a multa de R$ 6,4 milhões. Para quem não sabe, o Ecad (Escritório Central de Arracadação e Distribuiçã0) é a entidade responsável pela cobrança de direitos autorais no país. Nada menos do que uma máfia que há décadas toma conta desse setor, beneficiando meia dúzia de apaniguados e prejudicando a esmagadora maioria dos autores, artistas e detentores de direitos.

Não estou exagerando. Dirigido literalmente por meia dúzia de pessoas, mais alguns representantes de “associações” que dizem representar produtores culturais, o Ecad rouba mensalmente milhões. E sempre contou, para isso, com a conivência de governos, tribunais e políticos. Seu lobby no Congresso Nacional ajudou a mudar leis em seu favor e a eleger todo tipo de delinquente. Agora, parece, a farra acabou. Às decisões do Cade não cabem recursos. Além da multa ao Ecad, também foram penalizadas (em R$ 5,3 milhões cada uma) as entidades que lhe dão suporte. E todos ficam imediatamente proibidos de continuar com suas práticas mafiosas, que os conselheiros do Cade definiram como “cartel”.

A lista de irregularidades é extensa. A decisão da semana passada deveu-se a uma entre muitas ações apresentadas contra o Ecad, por causa de seus critérios de arrecadação. No caso, foi uma iniciativa da ABTA (Associação Brasileira de TV por Assinatura) contra uma aberração chamada blanket license (“licença de cobertor”): em vez de cobrar sobre a veiculação de uma música, os mafiosos estipularam uma taxa de 2,55% sobre o faturamento bruto de cada empresa. Na TV paga, a cobrança incide sobre todas as operadoras e programadoras que exibem ou licenciam videoclipes, filmes (onde são executadas músicas), shows etc. Quando se trata de uma emissora de rádio, idem: não há cobrança sobre cada música executada, mas uma taxa fixa sobre o faturamento da empresa, não importando se esta toca, digamos, somente canções gospel, rock dos anos 60, música erudita ou sucessos do momento.

O princípio da roubalheira é até fácil de entender. Na impossibilidade física de fiscalizar tudo que é veiculado e executado, o Ecad criou uma espécie de “cobrança por atacado”, que além de ser injusta – do ponto de vista financeiro – penaliza quem não merece. Vejam o caso de uma festa de casamento ou de formatura: o organizador pode tocar quantas e quais músicas quiser, ao vivo ou gravadas; não importa, a cobrança é fixa, com base no metro quadrado do local. Na outra ponta, o Ecad cobra de seus ingênuos associados (cantores, músicos, compositores, roteiristas, produtores) uma taxa mensal para fiscalizar o uso de suas obras. E lhes repassa valores que, supostamente, representariam a quantidade de execuções. Supostamente porque, segundo 99% desses profissionais, o que recebem é irrisório.

A ordem do Cade é que, a partir de agora, sejam definidos critérios de cobrança e pagamento com base na efetiva reprodução das obras de arte. A fiscalização terá de ser direta, comprovada e individualizada para cada música, filme etc. Isso vai mudar praticamente toda a cadeia de serviços, não apenas na TV por assinatura, mas na TV aberta (a Globo entrou no STF com ação semelhante), rádios, internet e todo o mercado de eventos. Como lembra o colega Samuel Possebon, do site Tela Viva, terá de ser criado “um novo ambiente de negociação para empresas de internet, sites de streaming de música, empresas de telefonia celular e ringtones, emissoras de televisão aberta, organizadores de espetáculos e eventos e até festas de casamento.”

Bem, nem tudo é otimismo. Os mafiosos certamente irão à Justiça, a única que pode reverter as decisões do Cade. Mas os tribunais estão repletos de ações contra essa maracutaia bem brasileira. E não há dúvida de que, por sua respeitabilidade, uma decisão do Cade inspira outras na mesma linha. A partir de agora, todas as pessoas e empresas que produzem ou utilizam obras artísticas ou culturais terá de respeitar e ser respeitado. É bom, e todo mundo gosta.

 

Orlando Barrozo

Orlando Barrozo é jornalista especializado em tecnologia desde 1982. Foi editor de publicações como VIDEO NEWS e AUDIO NEWS, além de colunista do JORNAL DA TARDE (SP). Fundou as revistas VER VIDEO, SPOT, AUDITÓRIO&CIA, BUSINESS TECH e AUDIO PLUS. Atualmente, dirige a revista HOME THEATER, fundada por ele em 1996, e os sites hometheater.com.br e businesstech.net.br. Gosta também de dar seus palpites em assuntos como política, economia, esportes e artes em geral.

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  • Louvado seja o CADE por este acerto! Assim como a estúpida Ordem dos Músicos do Brasil, esta entidade nem de longe age/agia pelo bem dos artistas, especialmente músicos. Enfim, um pouco de luz em nosso eterno túnel chamado Brasil.

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