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14/11, o dia do primeiro passo

O dia 14 de novembro de 2013 vai entrar para a História (sim, com “H” maiúsculo) como aquele em que o Brasil começou a se tornar um país de verdade. Pela primeira vez em mais de 500 anos, pudemos ver representantes da elite política serem presos dentro das regras democráticas, a mando da corte suprema, após longos oito anos de processo. Até a semana anterior, a maioria dos brasileiros ainda custava a acreditar que haveria prisões decorrentes do escândalo que os livros de história registrarão como “mensalão”. Desde o dia 14, existe uma luz nesse túnel.

Não cabe aqui rememorar os detalhes do escândalo, tampouco os do processo em si. Naturalmente, com o país dividido entre duas “torcidas” (uma a favor e outra contra o partido que ocupa o poder federal), cada um enxerga os episódios como lhe convém. Pouco se pode fazer quando alguém se convence da “sua” verdade e rejeita terminantemente argumentos em contrário. Pode-se afirmar que essa é uma espécie de patologia, parente próxima, por exemplo, do tabagismo: o fumante inveterado acha que não sofre de qualquer doença e recusa os tratamentos, fechando os olhos à dura realidade.

Há ainda o caso dos fingidores profissionais, diferentes daquele que o poeta definiu como alguém que “finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Não, esses são pagos – alguns poucos, regiamente – para fingir que certos fatos não aconteceram, foram inventados; ou, se ocorreram, não têm importância. Fingem e exploram seu fingimento em discursos, debates, colunas de jornal e revista, blogs e onde mais puderem.

E existem, sem dúvida, os que sucumbem à patologia devido a uma versão distorcida de idealismo, com toques de ingenuidade. Acabam sendo piores, talvez, porque sem perceber se prestam ao papel que no passado os cientistas políticos identificavam como “massa de manobra”. Repetem à exaustão aquilo que lhes foi ordenado, sem sequer se dar ao trabalho de questionar se a ordem faz sentido. Não conseguem pensar. São como papagaios, amestrados apenas para incomodar a vizinhança. Podemos encontrá-los diariamente em mesas de bar, pontos de táxi, seções de jornais dedicadas a cartas dos leitores e – cada vez mais comum – sites e blogs abertos a comentários.

É triste constatar que, 28 anos após o fim oficial da ditadura militar e 24 anos depois de votarem pela primeira vez para presidente da República, muitos brasileiros ainda não conseguem conviver com a democracia. Não aceitam opiniões divergentes, nem decisões que possam ferir seus interesses, ainda que essas partam do tribunal mais importante do país. Os mesmos que comemoravam e elogiavam o STF, meses atrás, quando o ministro Celso de Mello votou pelos tais embargos infringentes, agora condenam a mesma corte por punir os réus. E aqueles que à época criticaram violentamente os juízes hoje se regozijam com as punições.

Há quem diga que tudo isso é herança do colonialismo português, pai da burocracia e da corrupção que, no Brasil, se transformaram até em meio de vida. Pode ser também consequência da funesta desmontagem do sistema educacional público, obra dos ditadores militares, que resultou numa legião de analfabetos funcionais e a cada ano forma batalhões de jovens e crianças que mal conseguem formar uma frase. “Todo bem tem origem no conhecimento, e todo mal na ignorância”, disse o filósofo Sócrates, antecipando em mais de 2 mil anos a desastrosa realidade que nos cerca.

Mas, voltemos à luz no túnel. O maior ensinamento do caso mensalão não me parece ser o de que corruptos devem ir para a cadeia – isso é algo que todo mundo sabe e propaga. A lição mais importante é a de que toda punição deve ser, mais que um castigo, um ato educativo. Se um dos grandes males brasileiros é a impunidade, o fato de alguém – especialmente representante da elite – ir para trás das grades, após esgotar todas as chances de se defender, deve ser saudado como uma espécie de profilaxia democrática. Todos podem (devem, precisam) aprender com essa decisão.

Cabe agora à sociedade brasileira não se contentar com tão pouco. Foi dado apenas o primeiro passo, que demorou 500 anos! Muitos outros serão necessários até que a democracia pela qual lutamos seja digna desse nome. Mas, parafraseando o astronauta, talvez tenha sido um pequeno passo para quem os condenou e, sejamos otimistas, um passo enorme para o país.

Orlando Barrozo

Orlando Barrozo é jornalista especializado em tecnologia desde 1982. Foi editor de publicações como VIDEO NEWS e AUDIO NEWS, além de colunista do JORNAL DA TARDE (SP). Fundou as revistas VER VIDEO, SPOT, AUDITÓRIO&CIA, BUSINESS TECH e AUDIO PLUS. Atualmente, dirige a revista HOME THEATER, fundada por ele em 1996, e os sites hometheater.com.br e businesstech.net.br. Gosta também de dar seus palpites em assuntos como política, economia, esportes e artes em geral.

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  • Belíssimo texto, Orlando, com o qual concordo totalmente. Infelizmente, nesse Fla-Flu de hooligans raivosos que virou o debate político (?) nacional, opiniões lúcidas e equilibradas como a sua são cada vez mais raras.

    Abraços!

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