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A Copa e os falsos patriotas

A cada quatro anos o fenômeno se repete: a mídia dedica quase todo o seu espaço ao futebol e o país literalmente para quando a seleção entra em campo. Desta vez, porém, com a Copa sendo realizada no Brasil, acontece o inimaginável: o futebol está servindo de álibi para protestos, depredações, greves seriais, violência. Foi miseravelmente engolfado pela política – a pior espécie dela, aliás, política rasteira, oportunista, que não hesita em fazer da calúnia e do preconceito poderosas armas eleitoreiras.

Eis aí uma guerra em que não há vencedores. Ainda que a seleção venha a brilhar nos gramados, a derrota já está contabilizada pela História. Aproveitadores de várias espécies conseguiram transformar uma grande oportunidade oferecida ao país num festival de mazelas inédito em eventos desse porte. A festa que se prometia está irremediavelmente manchada por um sinistro mix de ufanismo, arrogância, incompetência e descaso. Procuram-se agora os culpados, e – como é costume no país dos espertos – cada um tenta empurrar a conta para o outro lado, já que tornou-se impossível simplesmente escondê-la sob os tapetes.

Que vivemos num país de memória curta e seletiva, não é novidade. Mas alguns detalhes não devem ter sido deletados, suponho. Em 2007, quando o Brasil se candidatou a sediar a Copa (o mesmo aconteceria no ano seguinte em relação à Olimpíada), houve música e júbilo patrocinados por um governo que nadava em altos níveis de popularidade. Apesar das denúncias do mensalão, Lula havia sido reeleito em 2006 com uma vitória avassaladora, e a oposição mal conseguia juntar seus cacos.

Lá do alto, o governo Lula acenou com quase 200 projetos que, de carona na Copa, levariam o país a um outro patamar global. Contra a vontade da própria Fifa, exigiu que fossem 12 (e não 8, como de hábito) as cidades-sede. Os poucos que ousaram desconfiar, alegando que o país tinha outras prioridades e não seria capaz de organizar o evento, foram rechaçados raivosamente como “eternos pessimistas” ou mesmo antipatriotas. Com o passar dos anos, alguns desses foram cooptados. As bilionárias verbas de patrocinadores e a miragem dos estádios megalomaníacos, próprios de uma sociedade ébria com seus êxitos momentâneos, serviram como um imenso e irresistível cala-boca.

Os mais atentos, porém, logo perceberam o gosto amargo da ostentação. O dono da casa havia ordenado pinturas externas em cores chamativas para atrair seus convidados, esquecendo (ou deixando pra lá…) o fato de que paredes, telhado, portas, janelas, encanamento se encontravam em estado de semipodridão. Pior: o lixo se acumulava por baixo da mobília, e mais ainda nos porões, espremendo a dignidade e a paciência dos moradores. Logo, os vizinhos – e as visitas, claro – passaram a notar algo de errado na construção. Tentaram marcar a festa em outro local, mas já não havia tempo para isso. E nem sequer a conta da pintura havia sido paga ainda…

E assim chegamos a 2014, com o país do futebol dividido entre os pró-Copa e a turma do não-vai-ter-Copa. Chega a ser engraçado (ou tragicômico) constatar que pessoas antes avessas ao futebol, tido como alienante e perigoso instrumento de manipulação política, da qual a Copa de 1970 é o símbolo mais citado, hoje posem nas redes sociais com suas camisas amarelas e saudações do tipo “vamos lá, Brasil”. Agora que as visitas estão chegando, seria hora, repetem esses novos-torcedores, de esquecer os malfeitos e destacar o que o país tem de melhor. Afinal, somos os donos da festa!

Alguém chegou a escrever, levianamente, que todos os países organizadores de Copas fizeram isso. Na Alemanha, por exemplo, ninguém falava do nazismo em 2006, quando o Mundial lá se realizou. É a velha arte de embaralhar as cartas para melar o jogo – no caso, não o jogo futebolístico, mas a discussão, essencialmente política, sobre patriotismo e o país que queremos construir. Citar os alemães, no caso, é duplamente leviano: o país tinha (e tem) dinheiro e capacidade para organizar quantas copas quiser; e não esconde seu passado, ao contrário: obras e monumentos referentes ao nazismo e ao comunismo estão lá por toda parte, aos olhos dos visitantes.

Todas as pessoas com nível mínimo de informação sabiam que o Brasil não teria como organizar uma Copa “padrão Fifa” – até porque já dera vexame ao promover os Jogos Panamericanos em 2007, principal referência em falta de planejamento e incúria financeira. Alguns até quiseram se iludir, e outros, de rabo preso, evitaram tocar no assunto. Ocorre que a oportunidade foi perdida. Sabe-se lá quantos investidores iriam trazer seus dólares e euros, se o governo quisesse fazer mais do que marketing. Infelizmente, não era o caso. Jamais saberemos.

Consumado o estrago, que toda a imprensa mundial já detectou, tentar esconder os problemas do Brasil é, além de inútil, depredar a própria essência do ser brasileiro. É uma atitude equivalente à dos que atropelam pedestres na calçada, jogam lixo na rua ou vandalizam prédios e veículos. Um desrespeito ao sofrimento dos milhões que se apertam todos os dias em ônibus e metrôs, aos que gemem nas filas de hospitais. É fingir que o país onde vivemos não existe. Como na canção de Cazuza, esta é a hora do Brasil mostrar a cara, sem maquiagem, para que os próprios brasileiros se reconheçam. Ninguém precisa torcer contra a seleção. Os que o fizerem serão apenas imbecis, nada mais. Gols de Neymar e cia. não irão apagar os males já cometidos.

Orlando Barrozo

Orlando Barrozo é jornalista especializado em tecnologia desde 1982. Foi editor de publicações como VIDEO NEWS e AUDIO NEWS, além de colunista do JORNAL DA TARDE (SP). Fundou as revistas VER VIDEO, SPOT, AUDITÓRIO&CIA, BUSINESS TECH e AUDIO PLUS. Atualmente, dirige a revista HOME THEATER, fundada por ele em 1996, e os sites hometheater.com.br e businesstech.net.br. Gosta também de dar seus palpites em assuntos como política, economia, esportes e artes em geral.

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