Cotas na TV paga: o que pensa o consumidor?

Por Orlando Barrozo

Nos últimos meses, vem se arrastando no Congresso uma discussão que, aparentemente, leva em conta tudo menos o interesse do consumidor – no caso, dos assinantes de TV por assinatura. Trata-se do projeto-de-lei 29/2007, também conhecido como “lei das cotas”, que institui uma nova legislação para o setor. O apelido deve-se ao aspecto mais polêmico do projeto: a criação de cotas para produções nacionais dentro das grades de programação de TV paga.

Apresentado pela primeira vez em 2007, dentro da Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, o projeto já recebeu tantas emendas, cortes e substitutivos que a versão atualmente em discussão tem pouco a ver com o texto original. Os parlamentares já tentaram colocá-lo em votação diversas vezes, mas sempre aparece alguém querendo cortar ou acrescentar um ou mais itens, forçando novo adiamento.

Esse processo, na teoria, seria elogiável. Afinal, é da discussão livre e aberta que costumam sair as melhores leis. No entanto, não é bem o que acontece nos bastidores da Comissão. A Anatel vem discutindo com operadoras e emissoras as possíveis mudanças no setor desde 2000, com o Congresso totalmente alheio ao problema até o ano passado. O mesmo, aliás, aconteceu com as discussões sobre a TV Digital: o tema vinha sendo debatido desde 1998, mas somente em 2006, quando o governo finalmente optou pelo padrão japonês, é que os congressistas decidiram entrar na conversa.

Demagogia, disputas eleitorais e conflitos de interesse entre grupos políticos e econômicos (ou tudo isso junto) estão por trás de praticamente todas as decisões que vêm sendo tomadas na área. O relator do projeto, deputado Jorge Bittar (PT-RJ), lançou a idéia de uma reformulação completa do mercado de TV paga, com a revogação da chamada Lei do Cabo, a abertura do segmento às operadoras telefônicas e a criação de cotas para produtores nacionais. Foi bombardeado de todos os lados e acabou tendo que voltar atrás em diversos pontos.

De fato, não é fácil a missão do deputado. Além das divergências entre áreas de interesse (emissoras abertas, por exemplo, não querem facilitar o crescimento das fechadas), há conflitos até dentro do mesmo segmento. A Globo defende pontos que são contestados pelas demais redes abertas. Há ainda a disputa entre produtores nacionais independentes, que têm pouco espaço nas grades atuais, e fornecedores internacionais.

Nesse quadro de disputas contínuas, a Anatel – a quem teoricamente caberia a palavra final, como órgão regulador e essencialmente técnico – mantém posições dúbias. E deputados, como se sabe, geralmente desdenham das questões técnicas, concentrando-se em suas implicações políticas.

Na última versão do projeto, Bittar e sua equipe de assessores sugerem uma simulação do que aconteceria se fossem implantadas as mudanças propostas. Essa simulação foi colocada no site da Câmara, mas na prática revelou que as pressões das emissoras abertas estão fazendo efeito. O texto propõe que uma programadora controle apenas 25% dos canais incentivados, ou seja, aqueles beneficiados pela introdução de cotas. Isso forçaria empresas como Net e TVA a buscar conteúdos em outras programadoras.

Um exemplo é o pacote Net Digital Advanced, que hoje tem 42 canais, sendo 12 (30%) dentro do regime de cotas. Seis deles pertencem à própria Net. No primeiro ano de aplicação da nova regra, a programadora teria que que colocar mais três canais brasileiros, de outras programadoras, para cumprir a cota. No segundo ano, a cota passa a ser aplicada em dois terços, ou seja, oito canais, de modo que dos seis canais Globosat, apenas dois poderiam ser considerados, restando assim seis a serem ocupados por outros programadores. Por fim, em três anos, com a regra plenamente em vigor, o pacote teria que ter 12 canais BR. Destes, a Globosat pode ser a responsável por apenas quatro (25%), restando então oito canais a serem cumpridos por outras programadoras.

Naturalmente, a Net não concorda com essa mudança e utiliza sua força dentro da ABTA (Associação Brasileira de TV por Assinatura) para pressionar os parlamentares. Já os programadores internacionais, representados pela ABPTA (Associação Brasileira de Programadores de TV por Assinatura), se opõem por outros motivos. Não concordam com as sugestões apresentadas pelas emissoras abertas, alertando para o risco de que o assinante recorra a fontes gratuitas de distribuição de conteúdo, como a internet.

Como se vê, a disputa ainda pode ir longe, e neste ano eleitoral pouca gente acredita que o projeto seja votado como está. Recentemente, Bittar queixou-se à imprensa das pressões que recebeu da Globo, que define como “o grupo dominante”, querendo bloquear qualquer mudança. “Curiosamente, está entre os produtores nacionais, mais especificamente o maior deles, a maior resistência às cotas. Grupo este que negociou conosco à exaustão”, afirmou Bittar.

Ao concordar com mudanças propostas pela Globo, Bittar achou que o problema estava resolvido. Mas outros grandes grupos de comunicação – Band, Abril e Record – disseram que só apoiariam o projeto se uma mesma programadora nacional não pudesse deter mais de 25% dos canais exibidos, abrindo espaço para suas concorrentes (veja aqui a íntegra do texto).

Curiosamente, Bittar havia concordado com a principal reivindicação da Globo, que era limitar o espaço para crescimento das operadoras telefônicas. Com isso, comprometeu totalmente o projeto original, cujo espírito era justamente criar mais concorrência no mercado. “Acho um absurdo a proibição unilateral de que as teles possam produzir conteúdo apesar de ser nacionais”, confessou o deputado. “Aceitamos isso para o bem das negociações e agora esse grupo quer puxar o tapete”.

Numa sessão da Comissão, Bittar chegou a insinuar que alguns de seus colegas estavam sendo atraídos pela Globo, o que causou grande mal-estar no Congresso. “O mercado está bloqueado por um único grupo econômico, e o recente embate entre Abril e Sky por causa da MTV é uma demonstração clara desse domínio”.

O plano B da Anatel – Caso o projeto 29/2007 não seja aprovado no Congresso, a Anatel preparou uma espécie de “plano B” para resguardar a possibilidade de entrada das teles nos serviços de televisão paga. Consta entre as metas da agência, detalhadas no Plano Geral de Atualização da Regulamentação (PGR), a oferta de novas outorgas neste mercado e a revisão dos regulamentos dos serviços de TV por assinatura.

A primeira providência será revisar as concessões de novas TVs por assinatura, segundo o superintendente de Serviços Privados da Anatel, Jarbas Valente. A longo prazo (em até dez anos), a agência prevê a revisão da regulamentação dos serviços de TV paga. Ambas as estratégias, no entanto, têm caráter precário na falta de uma reforma da Lei do Cabo ou sua revogação. Isso porque a Lei do Cabo tem uma definição particular de “concessão” que acaba chocando-se com a possibilidade de as concessionárias fixas obterem licenças para estes serviços.

A tática da Anatel será adaptar os regulamentos para permitir novos negócios como a compra da operadora mineira WayTV pela Oi.

O novo sistema de cotas é defendido ardentemente pelos produtores independentes, que teriam assim uma reserva de mercado na TV paga, modalidade já utilizada em alguns países (veja aqui o que esse setor defende). Mas as operadoras são contra. “O assinante compra ou paga por aquilo que ele precisa, e não pelo que a gente acha que ele precisa”, afirmou o presidente da NET, José Antonio Félix. Ele argumenta que 70% dos assinantes fazem uso do serviço apenas para melhorar a qualidade da TV aberta e não teriam interesse.

Outro problema é que o projeto coloca no mesmo pacote a liberação dos serviços de triple play (banda larga, TV por assinatura e telefonia fixa) e até quadruple play (incluindo telefonia celular) – e isso desagrada as emissoras. O problema é como separar as duas coisas em leis diferentes.

“Adotar as cotas é prestar um desserviço para a produção audiovisual no Brasil. Ao criar incentivo em forma de cota, qual será o esforço que a pessoa vai fazer para apresentar uma produção de qualidade?”, reclama Paulo Bornhausen, deputado do DEM-SC.

Uma coisa pelo menos ele já conseguiu: foram retiradas do texto as menções à internet, que Bittar a princípio queria incluir. “A internet é livre e tem que continuar a ser, sob pena de gerarmos um precedente que, no futuro, justifique algum tipo de censura a essa rede de informação”, diz Bornhausen.

As divergências vão mais longe ainda. Bittar quer reduzir para 10% o tempo de publicidade nas transmissões pagas, enquanto a Globo exige no mínimo 25%. Por sua vez, a Record quer incluir as retransmissoras com conteúdos dominantemente jornalísticos no chamado must-carry (mecanismo pelo qual as operadoras de TV paga são obrigadas a transmitir sinal da TV aberta) – o pedido, naturalmente, beneficiaria o canal Record News, que hoje tem pouco espaço.

No meio do tiroteio provocado pelo projeto, a ABTA chegou a lançar uma campanha pública sob o mote “Quem deve decidir o que você vê na sua TV: você ou um político”? Na internet, surgiram vários blogs e comunidades defendendo um lado ou outro. Mas Bittar e os demais deputados parecem preferir a discussão dentro das salas do Congresso, atentos apenas às sugestões e pressões dos grupos envolvidos. O consumidor, que é quem vai pagar mais essa conta, ainda não foi ouvido.

*Com informações do Tela Viva News. Publicado em 22/07/08.