Mundos inconciliáveis?

Por Ethevaldo Siqueira*

Estado ou iniciativa privada? Qual deles é a melhor opção para os serviços públicos? Qual deles atende melhor à sociedade? Não existiria, talvez, uma terceira opção que conciliasse esses dois mundos aparentemente inconciliáveis? É claro que sim. Não é utopia, não. Combinar o melhor desses dois mundos, sem radicalismos, sem distorções ideológicas e sem paixão, parece até mais inteligente e vantajoso do que optar um dos extremos. Espero tratar num futuro artigo desse modelo híbrido, geralmente designado por Parceria Público-Privada (PPP). Sei que não é fácil, até porque a maioria das pessoas parece já ter sua preferência, embora adotada e consolidada sem muita racionalidade. E, quase sempre, distorcida por preconceitos.

Querem alguns bons exemplos de visão deformada e distorcida sobre o tema? Quase todos já ouvimos a opinião generalizada de que o Estado e suas empresas são sempre ineficientes, corruptos e perdulários. É uma afirmativa tão ridícula quanto a de sentido oposto de que Estado e as empresas públicas são sempre eficientes e livres de corrupção.

Outra visão ultrapassada é a do mercado que se regula a si próprio e é capaz de atender a todas as necessidades e resolver todos os problemas da sociedade moderna. É algo tão sem sentido como as frases panfletárias dos radicais de esquerda, para os quais toda operadora ou concessionária privada de serviços públicos é corruptora das instituições, só visa ao lucro máximo e não tem compromisso com a sociedade.

Não sei como se espalhou outro equívoco entre a população brasileira, traduzido na ideia ingênua de que a estatização é sempre uma boa solução para corrigir os problemas de qualidade de serviços, preços e padrões de atendimento das concessionárias privadas de telecomunicações.

Dificilmente o cidadão faz as perguntas essenciais: “Por que estatizar?” e “Por que privatizar?” Além do porquê é preciso saber como privatizar. Poucos fazem a pergunta essencial: “Em que condições pode funcionar a privatização ou a estatização?”

As boas estatais

Vamos agora aos fatos. A prova concreta do papel mais relevante do Estado moderno pode ser reconhecida no Brasil nos diversos casos exemplares de empresas estatais, instituições públicas e iniciativas governamentais, cujo papel e impacto foram decisivos para o desenvolvimento do País, como Banco do Brasil, Universidade de São Paulo (USP),  Universidade de Campinas (Unicamp), Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Petrobrás, Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), Embraer, Embrapa, Embratel, Telebrás, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

E notem que cada uma dessas grandes iniciativas teve um ou dois líderes à altura do desafio que deviam enfrentar. A Embratel, criada em 1965, iniciou a grande decolagem da infraestrutura de telecomunicações do Brasil, com seus troncos de microondas de alta capacidade, a comunicação internacional via cabos submarinos e via satélite, tendo sido considerada uma das melhores de telecomunicações de longa distância do mundo. Seu grande líder: general Francisco de Souza Galvão.

A Telebrás, em sua primeira fase, de 1972 a 1985, fez um bom trabalho – e só não fez muito mais porque os sucessivos governos militares e civis decidiram enxugar seus superávits, reduzindo-lhe a capacidade de investimento. Seus dois grandes líderes: comandante Euclides Quandt de Oliveira e general José Antonio de Alencastro e Silva.

O Centro Tecnológico da Aeroespacial (CTA) e o Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA) – criados pelo marechal do ar Casimiro Montenegro Filho, visionário e idealista – foram, em grande parte, responsáveis pela competência industrial brasileira no setor e pelo sucesso futuro da Embraer, concebida e implantada sob a liderança e competência de Ozires Silva. Da mesma forma, a privatização dessa empresa ocorreu no momento certo, crucial, como solução para a necessidade de aporte de investimentos em pesquisa e desenvolvimento que não poderiam ser feitos pelo Estado brasileiro na velocidade e no volume exigidos pela indústria aeronáutica.

Vale a pena mencionar, por fim, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) – criada pelo engenheiro-agrônomo José Mendes Barcellos – como um, entre tantos exemplos para comprovar a afirmativa de que existem, sim, empresas e iniciativas estatais eficientes e bem administradas, que são capazes de revolucionar um setor.  Em especial, quando têm um líder como os que menciono aqui.

Neste ponto, vale perguntar: “Vocês não acham que, mais do que tudo, nos faltam hoje novos líderes do porte intelectual e moral de Montenegro, Galvão, Quandt, Alencastro e Ozires Silva, para conduzir e abrir novos horizontes para a tecnologia e a economia brasileira?”

Casos calamitosos

Essas são instituições que merecem nosso respeito e reverência. No reverso da moeda, infelizmente, tivemos empresas que, por seu aparelhamento político sistemático, foram verdadeiros símbolos de corrupção, retrocesso e vergonha.

Quem se lembra do antigo Departamento de Correios e Telégrafos (DCT), substituído em 1969 pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT ou Correios de hoje)? A profunda renovação dos Correios e sua transformação numa das estatais modelares deste País se deu pelas mãos de Haroldo Corrêa de Mattos, primeiro presidente da ECT, e de Adwaldo Botto de Barros, seu sucessor.

No passado, um dos casos mais vergonhosos de desídia e incompetência de uma empresa estatal era o da Estrada de Ferro Central do Brasil? E mesmo durante o regime militar, tivemos testemunhamos alguns exemplos de gestão pública catastrófica, como os da Ferrovia do Aço, da Nuclebrás, da Transamazônica e da Perimetral Norte (quem se lembra?).

Quanto custou tudo isso ao País?

Privatizações que “deram certo”

E no âmbito das privatizações? Aqui também temos aquelas que “dão certo” e aquelas que fracassam. Querem ver exemplos das que deram certo? Vejam o que é hoje a Embraer – cujas exportações anuais equivalem a mais de 100 vezes tudo que o País investiu no ITA. Vejam como a educação dá frutos surpreeendentes. Outro exemplo: a Vale, hoje uma das maiores mineradoras e siderúrgicas do mundo. Ou o caso bem sucedido da CSN, um ícone da ação estatal do passado.

E nas telecomunicações? Aqui temos as duas faces do problema. A face positiva com o sucesso indiscutível do aspecto quantitativo, tanto dos investimentos quanto da expansão da infraestrutura. Daí resultaram benefícios como a universalização dos serviços, cuja densidade saltou de apenas 14 telefones por 100 habitantes, para mais de 120. Por outras palavras: para cada brasileiro, há mais de um telefone em serviço.

A face negativa do setor privatizado decorre hoje dos elevados preços, da carga brutal de impostos, da baixa competição, do esvaziamento político da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e da falta de atualização da legislação setorial.

Querem ver uma privatização mal conduzida? A do setor elétrico, que foi praticamente concluída sem uma lei geral (ou marco regulatório) e sem que a agência reguladora (Aneel) tivesse sido instalada. Problemas semelhantes ocorreram na área de aviação civil.

Governos frouxos

O maioria dos problemas que o País enfrenta hoje nos setores privatizados, a começar das telecomunicações, decorre da frouxidão do governo, que não fiscaliza, não formula políticas públicas ambiciosas, não aplica a lei, não desonera os serviços dos tributos escorchantes, não exige o cumprimento rigoroso dos padrões de atendimento e de qualidade do serviço, não pune com rigor as concessionárias faltosas.

E, no caso do governo petista, o Executivo não tem, na verdade, muito interesse em fazer sua parte até para atribuir a deterioração dos serviços ao modelo privatizado e, ao final, acusar: “Esse modelo não funciona. Precisamos de uma estatal”. As agências reguladoras não têm nenhuma autoridade nem força para coibir os abusos (até porque são aparelhadas, politicamente esvaziadas e cada dia mais desprofissionalizadas).

É claro que, quando bem regulado, bem gerido e bem supervisionado, tanto o modelo de gestão pública quanto o privado podem dar bons resultados. O difícil é que isso ocorra na prática num País em que a interferência político-partidária no setor público quase sempre leva ao aparelhamento das maiores empresas e à corrupção.

Falta ao País também o mínimo de cultura regulatória e de fiscalização séria e rigorosa, capazes de assegurar ou exigir melhor desempenho das empresas privatizadas.

Visões demagógicas

Sem grandes quadros profissionais em administração pública e telecomunicações, o PT tem usado e abusado do chamado populismo estatal – apresentando sempre as privatizações como negociatas e formas de exploração da população por empresas privadas gananciosas, sejam nacionais ou estrangeiras. E, sem o apoio de nenhum estudo ou pesquisa, acusam as operadoras de prestadoras de péssimos serviços.

Seria muito mais inteligente e proveitoso para o País se essa esquerda anacrônica tivesse, ao longo de oito anos,  aperfeiçoado o modelo, atualizado a legislação, fortalecido a Anatel, desonerado os serviços das maiores alíquotas de impostos do mundo e não confiscado bilhões dos fundos setoriais.

O lado surrealista e revoltante do comportamento da chamada base governista, nos últimos anos, tem sido sua total omissão e conivência com os péssimos serviços estatais, na previdência, na saúde, nas estradas federais, na segurança, na educação e outros segmentos. Com que moral esse Estado pode exigir das empresas privadas um padrão de serviços que não nos dá, em nenhuma área estatizada?

Isso ocorre até nos órgãos de defesa do consumidor criados pelo Estado. Vocês já viram, por exemplo, o Procon, que é totalmente chapa-branca,  nos defender contra as mazelas estatais? Vocês já viram o Ministério Público lutar contra a morosidade e outras ineficiências da Justiça? Não é hipocrisia?

Os riscos de cada lado

Como pressuposto, podemos afirmar que existe muita virtude em cada um dos modelos de gestão pública ou privada. Mas há, igualmente, inegáveis riscos quando se faz a opção por um ou outro modelo.

No caso da empresa pública ou estatal, como sabemos, os maiores riscos são o empreguismo, a ineficiência, a baixa produtividade e a corrupção. Se for monopólio estatal, então, as perspectivas se agravam.

No caso da empresa privada de serviços públicos, o maior risco é seu poder corruptor sobre os organismos públicos e sua resistência permanente em atender aos objetivos sociais e de inclusão digital. O pecado capital da operadora privada não é visar ao lucro, como muitos esquerdistas jurássicos costumam dizer, pois nem a empresa pública pode abrir mão de uma operação superavitária. Em sentido geral, não se pode confundir empresa com entidade filantrópica ou instituição de caridade.

A grande lição que o mundo nos tem ensinado é de que não há concessionária eficiente sem fiscalização rigorosa e permanente, do governo, e sem a ação independente e altamente profissional da agência reguladora, inclusive na criação de um ambiente de competição crescente.

Em lugar de uma desgastante disputa entre os defensores dos dois modelos, com acusações intermináveis de lado a lado, o que realmente vale a pena é refletirmos sobre as diferenças fundamentais entre as duas opções. E, do ponto de vista ideológico, fugirmos dos extremos, popularmente conhecidos como extrema direita e extrema esquerda.

*Publicado no blog http://blogs.estadao.com.br/ethevaldo-siqueira/ em 19/05/2010