Um país de cabeça pra baixo

Por Orlando Barrozo

Ensinam os dicionários que obscurantismo pode ser definido como:
1) ignorância, falta de conhecimento;
2) estado de espírito refratário à razão e ao progresso;
3) política de impedir o esclarecimento;
4) hábito de ocultar fatos;
5) doutrina contrária ao progresso intelectual e material.
O ex-juiz Walter Maierovitch, por exemplo, em artigo na Folha de São Paulo, chamou de “obscurantismo medieval” a atitude de certos juízes de condenar ou absolver sem dar as razões, prática comum no Brasil, infelizmente.

Tentando compor um “coquetel” de todas essas definições, chego à conclusão de que vivemos, no Brasil de hoje, uma espécie de obscurantismo aveludado, uma tentativa – talvez até inconsciente – de dificultar o tráfego livre das idéias. Parece inacreditável, numa era dominada pela informação em tempo real, mas certos grupos se esmeram em defender interesses específicos com o mesmo afinco que exercitam para impedir que opiniões contrárias se expressem livremente. Nem falo aqui de interesses materiais, ou financeiros, embora estes também mobilizem intensas ações de bastidores, com a ocultação dos fatos em que se sustentam e o empenho em desmoralizar quem ouse denunciá-los.

Sem muito esforço, é possível enxergar obscurantismo, por exemplo, na atitude dos políticos que, ao ser flagrados em bandalheiras, acionam grupos de apoio para encobrir informações comprometedoras. Nos tempos nada saudosos da ditadura, esse era o padrão: esconder toda informação que fosse perigosa, ou mesmo apenas desagradável, ao regime e aos seus grupos aliados. No Brasil pós-ditadura, a política de tentar impedir o esclarecimento da população – e por via de conseqüência mantê-la na ignorância – tornou-se menos escancarada. Ainda assim, está longe de ser extinta. Confirma-o o próprio fato de, decorridas quase três décadas, convivermos com figuras emblemáticas do regime militar, a quem é permitido manter sua postura ditatorial e/ou coronelista.

Ainda hoje, pesquei num site a notícia de que num seminário sobre ONGs, em Brasilia, foi vedada a entrada da imprensa. O tema do encontro era “Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil”. Sociedade civil? Que estranhos entes são esses que proíbem a cobertura da mídia? Estariam, quem sabe, discutindo como ocultar o mau uso de convênios pagos com dinheiro público, tantas vezes denunciado? Para os promotores do tal seminário, a imprensa não deve representar a sociedade brasileira. Bem, com certeza, a chamada grande imprensa não representa os interesses do atual governo federal, incluindo sua “base aliada”. E, se é claro que jornais, revistas e emissoras de rádio e TV nem sempre preservam a necessária isenção em suas coberturas, é inegável que o caminho para corrigir essa falha não é a proibição.

As seguidas manifestações em defesa do que se convencionou chamar de “controle social da mídia” – na prática, um eufemismo para (de novo) ocultar a intenção real de impedir o esclarecimento – se articulam num projeto de poder que, cada dia de forma mais clara, denota a necessidade de controlar o fluxo da informação. Como, na era da internet, esse controle é virtualmente impossível, a saída é aperfeiçoar a velha prática da contra-informação (ou da anti-informação). Tragicamente para o país, essa atitude não é exclusiva do PT; antes, está no cerne da política brasileira. Aos grupos políticos que se revezam no poder, seja no governo federal e seus ministérios, autarquias e empresas estatais, seja nos estados e municípios, nunca interessa que a informação circule livremente. Sua força está intrinsecamente ligada à ignorância geral.

Também é trágico para a formação dos brasileiros que o conceito de ignorância, aqui, não seja restrito à falta de cultura ou à indigência educacional que vitima o país. Ignorantes são também aqueles que abraçam causas “da hora”, às vezes até recorrendo a falácias como – para citar outro exemplo extraído do noticiário recente – a autonomia universitária. Sem a menor noção de contexto histórico, estudantes da USP usaram esse conceito para protestar contra a presença de policiais no campus, onde três alunos foram detidos por uso de maconha. A forma de protesto que encontraram foi ocupar um dos prédios locais, o da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, invadido como tem sido feito, nos últimos anos, com inúmeros edifícios públicos.

Após alguns dias, uma assembléia dos estudantes decidiu pelo fim da ocupação. Parecia tudo resolvido da forma mais democrática (o voto em assembléia), quando alguns dos que perderam a votação dali saíram para invadir nada menos do que o prédio da Reitoria! Estranho esse conceito de democracia, em que se perde no voto e se ganha no grito… Ocupado o principal prédio do campus, teve início uma espécie de “guerra de mídia”: enquanto os grandes veículos de comunicação mostravam os 15 minutos de fama dos estudantes, com imagens de alguns deles de rosto encoberto, à moda das rebeliões em presídios, nas redes sociais entraram em ação grupos contrários à “militarização da USP”.

Nem com a intervenção da Justiça, que ordenou a desocupação imediata, esses grupos se acalmaram. Quando, finalmente, a PM invadiu o prédio e deteve os manifestantes por algumas horas, o coro mudou: “liberdade para os presos políticos da USP” ou “abaixo a violência da PM”. Poucos se deram em conta (aí de volta o hábito de ocultar fatos) de que os policiais agiram em cumprimento de ordem judicial e sem nenhum ato de violência – esta, ao contrário, partira dos próprios estudantes, que haviam depredado as instalações da Reitoria. Com a libertação, organizou-se uma greve, maneira mais sensata (e com certeza mais democrática) de protesto. A discussão sobre a presença ou não de policiamento na USP – que, a rigor, não ocorreu até agora em nenhum outro campus do país – é exemplo didático de como uma sociedade pode ser mobilizada via esclarecimento ou, quando assim se deseja, via obscurantismo. Qualquer estrangeiro que chegue a São Paulo e a quem seja perguntado se a polícia deve ter permissão para entrar na Cidade Universitária dirá que sim. Afinal, por que um campus aberto deve ser tratado diferentemente de outras regiões da cidade? Seria ali, quem sabe, uma ilha da fantasia, onde não há ilícito de qualquer espécie? Teriam alunos, professores e funcionários da USP algum alvará especial, ou condão que os faça distintos dos demais cidadãos paulistanos?

O genial Millôr Fernandes chegou a lançar em seu site a pergunta que não quer calar: “Do que você gosta mais: Democracia, Socialismo ou Esculhambação?” É o tipo de questionamento que afugenta quem não gosta de uma discussão democrática. No mundo da internet, pior ainda, pois tornou-se muito fácil dizer (ou escrever) aquilo que se pensa, sem respeito ao contraditório. As milhares de manifestações contra a presença da PM, incluindo artigos que a própria grande imprensa publicou, simplesmente ignoraram o aumento da incidência de crimes ocorridos no campus nos últimos anos, culminando com o assassinato de um estudante (por um assaltante) no início deste ano. Preferiu-se destacar que a USP foi desmilitarizada após a ditadura, e assim deve ser mantida para sempre. Omitiu-se (mais uma vez ocultando os fatos) que a PM de hoje, longe de ser exemplar, em nada lembra aqueles tempos sombrios e truculentos. Enfim, usou-se um símbolo da luta contra a repressão (a autonomia universitária) em estratégica combinação com a ignorância e a falta de informação dos jovens de hoje sobre o passado da USP.

Por fim, nada pode caracterizar melhor o estado de espírito refratário à razão e ao progresso do que chamar de “presos políticos” jovens que, ao invés de estudar e lutar por um ensino de boa qualidade, batalham pelo direito de fumar maconha no campus e depredam o patrimônio que o Estado lhes oferece, à custa do contribuinte. Sem um inimigo real a quem combater, esses jovens espalharam pelo campus cartazes contra o aquecimento global, a construção da Usina de Belo Monte, os lucros dos bancos etc. Não são “rebeldes sem causa”, o que seria até romântico, mas pouco mais do que “perdidos no espaço”, apenas para usar outra imagem cinematográfica.

Verdadeira afronta à memória dos que foram perseguidos, torturados e mortos no passado, chamar os manifestantes da USP de “presos políticos” é uma mistificação que pode até servir à causa da descriminalização da maconha – o que nem seria de todo condenável, se discutido com lucidez e sobriedade. Mas não serve à causa de informar aos jovens brasileiros, especialmente aqueles em idade universitária e que por ventura faltaram às aulas de História, o real significado da luta pela democracia.

Sou de uma geração que pode se sentir vitoriosa por ter eliminado uma ditadura, e talvez derrotada por não ter, até agora, conseguido colocar em seu lugar uma democracia de verdade, sem adjetivos, capaz de premiar o esforço e o mérito, dando oportunidades iguais a todos, e punir a falsidade, a desonestidade e a falta de ética. É uma derrota e tanto! Para amenizá-la, por mais duro que seja admiti-lo, não podemos cuspir no passado, nem agir como se o país estivesse de cabeça para baixo. Muito menos usar o efeito fugaz de um baseado para encobrir fatos e falsear a memória.

Aqueles que não desejam, nem praticam, o obscurantismo medieval têm a obrigação de, no mínimo, respeitar a História.