heart shaped bookA cultura e a justiça no Brasil vivem há décadas um dilema típico de país subdesenvolvido: deve ou não ser autorizada a publicação de biografias sobre pessoas públicas? Ou, em outras palavras, uma pessoa tem o direito de impedir que se publique algo a seu respeito? Censurar, como se sabe, é proibido – embora, como muitas leis no Brasil, essa proibição frequentemente acabe se tornando letra vazia. Que o digam os juízes que, nos últimos meses, têm obrigado sites a retirar do ar notícias e comentários sobre certos indivíduos, notadamente corruptos.

Bem, essa nova modalidade de censura – online – fica para outro artigo. O que quero comentar aqui é a a criação do Procure Saber, grupo de artistas famosos que, segundo a Folha de São Paulo, pretende se transformar em entidade na categoria amicus curiae (do latim “interessado na causa”), o que lhe daria o direito de intervir em processos judiciais de terceiros. Sua mentora é a polêmica empresária Paula Lavigne, que representa nomes como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Djavan, entre outros. Enquanto a Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) luta no STF para derrubar a lei que exige autorização prévia para publicação de biografias, o Procure Saber quer justamente proteger essa norma.

Há razões consideráveis de ambos os lados, mas antes é preciso lembrar alguns episódios simbólicos do comportamento brasileiro em relação a seus ídolos. O mais notório foi o de Roberto Carlos, que já por duas vezes conseguiu na Justiça a retirada de circulação de publicações que o citavam. Ou seja, não gostou do que leu e, ao invés de processar os autores (como seria até aceitável), preferiu proibir que as pessoas lessem. O fato de que o material publicado em nada comprometesse sua imagem era secundário para Roberto: ele simplesmente não quer que nada venha a público, e ponto final. Argumento que, sabe-se lá como, convenceu os juízes.

Há ainda o caso de Noel Rosa, compositor falecido em 1937, mas cujos herdeiros – ou alguém que se intitula como tal – vetaram a publicação do livro “Noel Rosa – Uma Biografia”, dos jornalistas João Máximo e Carlos Didier, em 1990. A alegação oficial é que o livro cita o suicídio de familiares de Noel, detalhe até hoje mal esclarecido. Pior ainda me parece o caso de Ruy Castro, cuja obra-prima “Garrincha, a Estrela Solitária” foi proibida a pedido de familiares do famoso jogador, alegando que o autor narra em detalhes a luta de Garrincha contra o alcoolismo. Ruy, a propósito, é autor de um brilhante discurso a respeito (leiam aqui).

Nos dois processos, vieram a público acusações de que os familiares de Noel e Garrincha na verdade queriam mesmo era receber indenizações. Pura chantagem. Ninguém ali estava de fato preocupado com a imagem dos dois ídolos, muito menos com o resgate de suas obras fantásticas, proeza que os dois livros – mesmo censurados – atingiram. Tanto Noel quanto Garrincha estavam lá, esquecidos em seus túmulos, reduzidos a estátuas só adoradas pelos pombos, até ressurgirem dignamente nas duas biografias.

Como em tantos outros livros sobre figuras importantes da nossa história, os autores prestaram um enorme serviço ao país, elevando ao máximo o status de ídolos que, se dependesse de seus parentes e “amigos”, continuariam mofando. Basta dizer que, após o sucesso dos livros, discos de Noel voltaram a circular em boa quantidade, e Garrincha ganhou filmes, exposições e debates como nunca tivera antes.

Agora, o argumento de Paula Lavigne e seus representados é explícito: “Se alguém quiser escrever uma biografia e publicar na internet sem cobrar, tudo bem”, diz ela. “O problema é lucrar com isso.” A tese é ótima. Ganhar dinheiro usando a fama de alguém é, no mínimo, questionável. Não foram estes os casos citados acima, certamente. A valer esse raciocínio, todos os livros publicados deveriam então render direitos autorais a seus personagens, sejam eles conhecidos ou não. Mas, onde entrariam aí os custos de pesquisa, deslocamentos, transcrições, redação, edição, revisão, editoração, impressão? Bem, será um desestímulo a escritores e biógrafos, que já não ganham lá grande coisa, mas pelo menos haverá um quê de justiça nos processos.

Bem diferente disso é proibir, ainda mais previamente. Impedir alguém de executar um trabalho e ser remunerado por ele é inaceitável. Pior ainda é tentar impedir que um país conheça sua história, que já foi escrita por suas figuras mais talentosas e precisa ser constantemente revista e estudada. Se a moda pega, boa parte dos livros didáticos usados nas aulas de História do Brasil iria para o lixo. E os mensaleiros conseguiriam facilmente aplacar as denúncias que lhes pesam.

Mas, por que, lá no primeiro parágrafo eu disse que isso é coisa de país subdesenvolvido? Sim, há disputas do gênero também no Primeiro Mundo. Mas, além de termos uma legislação de direitos autorais confusa, propiciando decisões judiciais que variam ao sabor da fama e do poder financeiro dos envolvidos, o que irrita é o oportunismo: só porque seu tataravô fez grandes obras, nada justifica que você queira se apropriar delas.

Ou, para usar uma ótima frase da ativista sul-africana Marian-Wright Edelman: “Não fique achando que você tem direito a uma coisa, se você não suou nem se esforçou por ela”.

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