“Minha visão era baseada na colaboração, não na exploração. E ainda há motivos para continuar lutando por ela”.*
Eu tinha 34 anos quando tive a ideia da world wide web. Aproveitei todas as oportunidades que surgiram para falar sobre o assunto. Expliquei como seria em diversas reuniões e palestras, e fui até a uma estação de esqui para desenhar o projeto na neve.
Insisti com os dirigentes da CERN (Organização Europeia de Pesquisa Nuclear), onde trabalhava na época, que a princípio acharam a ideia “um pouco excêntrica”, mas depois aceitaram e me deixaram trabalhar nela. Eu estava convencido de que era possível combinar duas tecnologias computacionais já existentes: a internet e o hipertexto, que é capaz de dar vida a um documento comum adicionando “links”.
Eu achava que dar aos usuários essa maneira simples de navegar pela internet permitiria despertar a criatividade e a colaboração em escala global. Bastaria colocar qualquer coisa na web e, algum tempo depois, teríamos tudo ali.
Só que, para ter tudo na web, era necessário que todo mundo tivesse condições de usá-la, e quisesse fazer isso. Isso de fato era pedir muito. Eu não poderia exigir que as pessoas pagassem a cada busca ou upload que fizessem. Portanto, para que a ideia desse certo seria preciso que fosse gratuita. Foi por esse motivo que, em 1993, convenci meus gerentes na CERN a doar a propriedade intelectual da world wide web, colocando-a em domínio público. Ou seja, entregamos de presente a web para todo mundo.
“Não somos mais usuários, fomos transformados em produto”
Hoje, olho para minha invenção e sou forçado a perguntar: será que a web é gratuita? Não, claro que não. Vemos um grupo de grandes plataformas atuando sobre os dados privados dos usuários para compartilhar essas informações com empresas e até governos repressivos. Vemos algoritmos onipresentes desenhados para viciar e prejudicar a saúde mental de nossos jovens. Comercializar dados pessoais certamente não faz parte da minha visão de uma internet livre.
Em muitas plataformas, não somos mais usuários, fomos transformados em produto. Nossos dados, mesmo que de forma anônima, são vendidos a atores que nunca pretendemos atingir, e eles podem nos direcionar conteúdos e propaganda. Isso inclui conteúdo deliberadamente perigoso que leva à violência do mundo real, além de espalhar desinformação causando estragos ao nosso bem-estar psicológico e minando a coesão social.
Mas nós temos a capacidade técnica para devolver esse poder aos indivíduos. Solid é um padrão interoperável de código aberto que eu e minha equipe desenvolvemos no MIT há mais de uma década. Os aplicativos que rodam no Solid não se apoderam dos dados dos usuários – eles têm de solicitar sua concordância, e você pode aceitar ou não.
E, em vez de estarem distribuídos por vários lugares na internet, nas mãos de alguém que pagou para usá-los, seus dados permanecem num único lugar e são controlados por você.
“Por que você não pode ver seus dados que as redes utilizam? Você é o dono deles”.
Por que seu smartwatch descreve seus dados biológicos num determinado site ou plataforma e num determinado formato? Por que seu cartão de crédito repassa seus dados financeiros a um segundo site ou plataforma e num formato diferente? Por que seus comentários no YouTube, posts no Reddit, atualizações no Facebook etc. estão armazenados em lugares diversos? E por que as redes partem do princípio de que você não pode ver esses dados? Foi você quem os gerou – seus atos, escolhas, seu corpo, suas preferências, decisões. Você é que deve ser dono deles. Você deveria ter poder sobre eles.
Em algo ponto entre minha visão original da web 1.0 e a expansão das redes sociais como parte da web 2.0, nós demos um passo errado. Estamos agora numa nova encruzilhada, onde precisamos decidir se a Inteligência Artificial será usada para o bem da sociedade ou para sua deterioração.
E como podemos aprender com os erros do passado? Em primeiro lugar, devemos garantir que os legisladores e os responsáveis pelas políticas públicas não cometam com a IA o mesmo erro que cometeram com as redes sociais: levaram uma década para tentar regulamentá-las! Já passamos da hora de decidir sobre um modelo de governança para a IA, portanto precisamos agir com urgência.
Em 2017, escrevi um experimento sobre uma IA que trabalha “para você”. Chamei-o de Charlie. Charlie trabalha como se fosse seu medico ou seu advogado, orientado pelas leis, regulações e códigos de conduta. Por que essa mesma estrutura não pode ser adotada para IA? Já aprendemos com as redes sociais que o poder está com os monopólios que controlam e se utilizam de nossos dados pessoais. Não podemos permitir que o mesmo aconteça com a IA.
“Precisamos de uma governança global, sem fins lucrativos, para a IA”
Então, o que fazer daqui para frente? Parte da frustração com as democracias do século 21 vem do fato de que os governantes têm demorado muito para atender as demandas dos cidadãos digitais. A indústria da IA é extremamente competitiva, e o desenvolvimento e a governança desse setor é ditado pelas empresas. A lição das mídias sociais é que esse modelo não irá criar valor para os indivíduos.
Eu codifiquei a world wide web num simples computador de uma pequena sala. Mas essa salinha não era minha, pertencia à CERN. A CERN foi criada logo após a 2ª Guerra pela ONU e os governos europeus, que identificaram um ponto de virada científica a exigir a colaboração internacional.
É difícil imaginar uma big tech hoje concordando em compartilhar a web sem recompensas comerciais, como a CERN me permitiu fazer. E é por isso que precisamos de uma entidade como a CERN, sem fins lucrativos, para dirigir as pesquisas internacionais sobre IA.
Eu entreguei a web de graça porque pensava que ela só daria certo se funcionasse para todo mundo. Hoje, acredito que isso seja mais verdadeiro do que nunca. Regulação e governança global são tecnicamente viáveis, embora dependentes do poder político. Se conseguirmos controlar esse processo, temos chance de restaurar a web como ferramenta de colaboração, criatividade e empatia ultrapassando as fronteiras culturais.
Podemos ainda reempoderar os indivíduos e tomar de volta a web. Não é tarde.
*Artigo publicado no jornal inglês The Guardian em 28/09/2025 Clique para ver o original.
