Trem-bala perdida no Alemão

 Por Vinicius Torres Freire

Está difícil de sair o leilão do trem-bala. Mesmo com subsídios, taxas de juros de pai para filho, abatimento de juros e um sócio estatal, quase mais ninguém quer participar da concorrência, que seria fechada no dia 29. Na prática, sobraram apenas empresas privadas e estatais da Coreia do Sul. Os chineses, que poderiam liderar outro consórcio, batem o pé, reclamam do prazo e das condições do negócio.

“Corta”, como dizem nos filmes os diretores de cinema. Corta para as balas. Durante a tarde, o jornalista ouve mais queixas sobre o projeto do trem-bala e rumores do governo sobre o adiamento do leilão. Enquanto isso, passa na TV que o Rio de Janeiro vive dias da São Paulo dos tempos do PCC, a ONG ou “holding” do crime paulista. O trem-bala vai passar por ali, pela faixa de Gaza carioca, pelos subúrbios. Talvez perto de um daqueles caminhos de terra batida pelos quais os traficantes retiram-se diante do ataque da polícia e dos blindados da Marinha.

Um bangue-bangue de meia dúzia de bandidos basta para bloquear as Linhas Vermelha e Amarela, avenidas expressas que cortam os subúrbios conflagrados do Rio. Imaginem a diversão que seria estourar a tiros as janelas de um trem-bala novinho em folha. Não, claro que esse não é um argumento contra a construção do trem-bala. Mas dá o contexto.

Menos dramático, pelo menos no que diz respeito ao risco de perder a vida, a gente pode imaginar também os passageiros espremidos nos trens metropolitanos que saem da zona leste de São Paulo para despejar trabalhadores no centro da cidade. Da janela, talvez possam ver um trem-bala meio vazio zunindo na direção contrária, para o Rio.

Seria espírito de porco dizer que o Brasil não melhorou nos últimos 5, 10 ou 15 anos. Mas considerem os dados. Em qualquer um desses rankings de renda média, desenvolvimento humano e similares, o Brasil costuma aparecer lá pelo meio da lista de uns 150 países. Ainda somos muito pobrinhos, desiguais, cruéis, mal-educados, doentes, ignorantes, burocratizados, corruptos etc. Nossos sonhos de suprema elegância e grandeza ainda são uma pilhéria.

Parte da nosso surto recente de mania de grandeza deve-se à alegria de financistas, que fazem muito dinheiro por aqui. Temos uma Bolsa grande, uma economia razoavelmente grande e estável. Os povos dos mercados e seus porta-vozes ficam felizes e nos contagiam. Na febre, temos delírios de grandeza.

Inventamos que temos poder e dinheiro bastante para intervir em conflitos geopolíticos; que há uma “nova classe média” (trabalhadores pobres algo remediados e sem instrução); que podemos virar uma terra civilizada quando ainda a povoamos com tanta gente ignorante. Sim, fala-se muito de educação, mas a maioria detestamos discutir instrução a sério, porque não gostamos nem de escola nem de ler.

Sorte que os nossos bandidos sejam também pés de chinelo, ignorantes desorganizados dados a terrorismos amadores – lembre-se do profissionalismo bandido no México. Mas ainda podemos chegar lá. Basta continuarmos dando atenção a futricas do PMDB, a juros que sobem num dia por causa de futricas sobre o BC, firulas sobre o Enem, sobre o analfabetismo do Tiririca etc. Enquanto isso, a taxa de juros ferve na chapa do Alemão.

Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo em 26/11/2010