A ideologia da corrupção

Por Orlando Barrozo

Millôr Fernandes já disse que todo partido é uma gangue com ideologia. Não sei se cabe a generalização. É provável que em alguns países os partidos políticos professem sinceramente seus ideais e acreditem que estejam servindo a população. Infelizmente, não é o caso do Brasil.

Se é fato que a corrupção não foi inventada pelos políticos atuais (parece estar na própria gênese do povo brasileiro), torna-se cada vez mais visível essa espécie de democracia ao avesso, na qual políticos não se elegem para combater os malfeitos, mas para se beneficiar (quando não se apropriar) deles.

Já se tornou enfadonho citar o mensalão como exemplo supremo de corrupção. De fato, a série de escândalos denunciada a partir de 2005 – e até hoje não devidamente punida – encarna bem a versão tupiniquim de democracia representativa. Mas seria injusto atribuir apenas aos mensaleiros os méritos por essa, digamos, inovação “made in Brasil”.

Às vezes, tem-se a impressão de que a maioria dos brasileiros, se pudesse, faria exatamente o que fazem os políticos. Pensando bem, estes, na prática, estão apenas levando a Brasilia (e, por extensão, a todos os espaços de poder, incluindo prefeituras, secretarias, tribunais, órgãos públicos em geral) o conceito já estabelecido nas ruas e praças pelo país afora: o importante é levar vantagem.

O cidadão que joga lixo na rua; a madame que estaciona seu carro em fila dupla; o rapaz que compra CDs piratas no camelô da esquina; o jogador de futebol que, ao sofrer uma falta, simula dores dignas de uma agressão bárbara; o comerciante que não dá nota fiscal; o motoqueiro que arranca o retrovisor do carro ao lado e segue em frente como se isso fosse normal; o servidor público que atende mal ou, pior, nem atende porque sequer comparece ao trabalho nos horários em que deveria; todos esses brasileiros estão, na verdade, tentando levar vantagem indevida. Desprezam os direitos de seus semelhantes, aproveitando-se das altíssimas taxas de impunidade vigentes. E, nas conversas com seus amigos, devem – como todos nós – falar mal dos políticos.

Não, não estou querendo desculpar mensaleiros e demais especialistas em roubos públicos. Longe disso. Tento apenas entender o mecanismo mental que leva um ser humano a usurpar de situações favoráveis, prejudicando outro ser humano. Chego a crer que impera no Brasil algo como uma ideologia da corrupção. Variam os graus de abuso e o tamanho da cara de pau. Mas, no fundo, o sindicalista que convoca uma passeata para sexta-feira à tarde apenas para enforcar o trabalho está sendo tão oportunista e corrupto quanto aquele deputado (ou deputada) flagrado recebendo dinheiro da empreiteira. A diferença está apenas nos valores auferidos.

Evidentemente, os milhões ou bilhões roubados de nossos bolsos pelas várias instâncias de poder são muito mais graves do que furar uma fila ou falsificar um atestado médico para faltar ao trabalho. Mas todas essas atitudes têm uma raiz comum: a crença de que tudo vale a pena para tirar alguma vantagem.

A rigor, todos no Brasil defendem o combate à corrupção – desde que não afete seus privilégios. O que, interpretado de trás para frente, significa mais ou menos o seguinte: senhores políticos, podem continuar roubando aí, que eu vou furando a minha fila aqui. Ou, em outra versão: Sarney, pode usar o jatinho da PM, só não esqueça de me levar junto. De certa forma, nos tornamos sócios dessa gente, que deve gargalhar toda vez que surge uma nova denúncia.

Será esse mesmo o “grito silencioso das ruas”, como alguém já definiu? Estaremos condenados a eternamente ver a banda da corrupção passar diante de nós, que simplesmente tapamos o nariz e corremos para ver o futebol ou a novela das nove? Continuaremos a nos indignar apenas pela internet, nos facebooks da vida? É essa a herança que queremos deixar a nossos filhos, junto com o tênis da moda e o celular que os mantém conectados ao nada?