Black Box, a revolução na pirataria de vídeo

By Jonathan Franklin*

         As ruas de São Paulo são um paraíso para falsificadores. Homens atravessam multidões empurrando carrinhos de mão empilhados com sacos de lixo cheios de bolsas Louis Vuitton para serem vendidas a US$ 30. Imitações de tênis Nike são vendidas por US$ 8. Óculos de sol Oakley por US$ 5 cada. E pacotes de 50 mil e-mails (organizados por profissão e região) podem ser comprados por apenas US$ 3. Mas, durante o período de Natal, o item mais atraente era uma pequena caixa preta não maior que alguns maços de cigarro, mas com chips de computador, circuitos e software suficientes para receber quase todos os programas de TV e streaming na Terra.

         “Esta tem mil canais”, foi o que me disse um vendedor enquanto desempacotava a caixa, conectava-a a uma tela e começava a falar por que eu deveria gastar R$ 480 (cerca de US$ 125) para ter acesso livre e ilegal a HBO, FOX e ESPN. Enquanto ele exibia os canais em ordem alfabética (começando com a TV argelina e terminando com a TV vietnamita), mencionei que era de Boston. Em poucos segundos, o vendedor encontrou a afiliada da ABC em Boston e transmitiu uma imagem nítida do ‘Good Morning America’.

         Assim como milhões de pessoas ao redor do mundo, sou viciado em Netflix, Spotify e serviços de streaming que permitem acessar milhares de filmes e músicas. Graças à queda nos preços de streaming, as principais empresas de mídia e entretenimento encontraram uma nova maneira de levar seus filmes, séries e serviços de notícias aos consumidores. As assinaturas legais na América Latina para serviços como HBO on Demand, Netflix ou Spotify custam em torno de US$ 10 por mês, e os negócios estão crescendo.

         A receita do streaming de vídeo na América Latina deve aumentar de US$ 2 bilhões para US$ 6 bilhões por ano nos próximos cinco anos. Mas a mesma tecnologia que torna tão conveniente assistir conteúdos – até em um elevador ou no metrô – permite que uma indústria paralela copie, redirecione e revenda esses serviços com pacotes de assinatura muito mais baratos, ou mesmo com um único pagamento.

         Apesar dos inúmeros esforços dos governos para combater a tendência, a pirataria de TV paga e a transmissão ilegal de conteúdo licenciado estão desviando a receita de várias formas. “A ‘indústria’ pirata cresceu e se tornou bem organizada e mais comercial, com muita acontecendo nos bastidores”, disse Kieron Edwards, diretor técnico do grupo de proteção de conteúdo da SkyTV.

         Por toda a América Latina, Instagram e Facebook estão repletos de anúncios que oferecem acesso pirateado ao Netflix e ao Spotify, muitas vezes em pacotes de US$ 3 por mês. O pagamento é feito via PayPal e os códigos de acesso são atualizados mensalmente via WhatsApp. Ao roubar o sinal digital, construir suas próprias redes de servidores e inscrever assinantes, piratas em todo o continente buscam formas de monetizar a retransmissão de sinais roubados, seja de filmes, games ou conteúdos pornográficos. É um modelo de negócios que chamo de P2C – Pirataria para o Consumidor (Pirate to Consumer).

         De todas as maneiras de roubar o sinal e transmitir conteúdo ilegalmente, nada na América Latina é maior hoje que as Black Boxes, que os especialistas do setor chamam “dispositivos de streaming ilegais”. Só no Brasil há cerca de 2 milhões delas em uso, de acordo com a Alliance Against Piracy in Pay TV. O atraso em comparação com o sinal da TV ao vivo pode ser inferior a 40 segundos. E várias plataformas permitem que o usuário pague por programas adicionais, como partidas de futebol da La Liga espanhola, por exemplo. “Nos últimos dois anos, o volume de consumo através dessas caixas realmente disparou”, disse Ygor Valério, vice-presidente e conselheiro de proteção de conteúdo da Motion Picture Association of America.

         Os produtores de conteúdo já enfrentaram desafios antes – dos DVDs pirateados ao compartilhamento ilegal de filmes nos anos 2000. Mas não há precedente para o desafio colocado pela Black Box e plataformas semelhantes. Hoje, quase um terço dos lares latinoamericanos com TV paga recebe o sinal ilegalmente. De acordo com o Fórum Nacional Contra a Pirataria e Ilegalidade do Brasil, as perdas chegaram a US$ 1,2 bilhão em 2017. O grupo estimou perdas de mais US$ 950 milhões para a indústria cinematográfica nacional.

         Simon Trudelle, diretor de marketing na NAGRA, líder em equipamentos de proteção antipirataria, disse que muitos proprietários de conteúdo licenciado ainda não perceberam completamente a ameaça. “É como ter uma loja e as pessoas começarem a sair pela porta sem pagar. Em algum momento você tem que ser proativo e proteger seu modelo de negócios, com itens de alto valor protegidos com um chip ou um dispositivo”, disse um Trudelle exaltado. Ele comparou o momento atual com a indústria da música em meados dos anos 2000, quando perdeu metade de sua receita em cinco anos.

         Seria mais do que apenas um dilema para a grande indústria. A pirataria, em última análise, significa menos receita para atores, roteiristas, músicos e cineastas, bem como para os governos. É verdade que muitos consumidores latinoamericanos não conseguem arcar com o preço dos serviços de TV paga e, por isso, podem não ser considerados receita perdida para o setor. Mas muitos que compram produtos pirateados são de classe média ou mais ricos. Ao não pagar sua parte, estão sabotando os esforços para injetar capital e recursos nos produtores de seu país.

         O presidente colombiano Ivan Duque defendeu passionalmente a necessidade de impulsionar a indústria de entretenimento – a chamada economia laranja (Orange Economy) – de 3.3% para 10% do PIB. Mas sem proteção diligente da propriedade intelectual, é improvável que isso aconteça. Depois de participar de uma reunião do setor em setembro de 2018, um importante executivo de TV paga ouviu as ultimas atualizações sobre pirataria e concluiu: “Estamos perdendo essa guerra”.

 Voando para fora das prateleiras

         Esse último produto de pirataria digital na América Latina foi identificado pela primeira vez há seis anos, de acordo com Michael Hartman, vice-presidente da AT&T e antigo conselheiro geral da DirectTV Latin América (hoje VRIO Corporation). Em 2012, Hartman recebeu um telefonema de Porto Rico. “Ei, caixas DISH (receptoras de TV) estão sendo vendidas por todo o país a preços incrivelmente baixos, sem qualquer mensalidade. Não sabemos o que está acontecendo”.

         Naquela época, as caixas DISH não eram vendidas legalmente em Porto Rico, mas empresários piratas com acesso a capital, largura de banda e tecnologia competiam com os serviços de satélite da DirectTV oferecendo uma caixinha de mesa. “A coisa era realmente atraente para o usuário”, disse Hartman. “Estavam conectando essa caixa à internet para obter todos os sinais de TV paga de graça”. Após a ligação, Hartman percebeu que a desordem estava no horizonte. “Ficou muito claro para mim que quando isso chegasse ao resto da América Latina, teríamos grandes problemas”.

         Ele estava certo, é claro. O próspero comércio nas ruas de São Paulo é a cauda de um negócio que começa com o fabricante de caixas na Ásia e emprega um exército internacional de hackers, que os membros da indústria até agora identificaram trabalhando na China, Hong Kong, Europa Oriental e Chile. Para garantir um serviço de alta qualidade, as empresas chinesas costumam fabricar as caixas em configurações “pirate-friendly”. Algumas até criam e mantêm sofisticados servidores piratas. Entre os recurso-padrão agora contidos no software da caixa está o código projetado para reconfigurar automaticamente as redes quando a autoridade local desliga o acesso a servidores externos.

         Para construir redes inteiras de canais, os piratas capturam o sinal protegido em vários locais ao redor do mundo, seja modificando ilegalmente caixas de operadores legítimos ou usando hardwares e softwares de captura de vídeo disponíveis na indústria. Em seguida, vinculam os feeds de vídeo – cada caixa individual é dedicada a transmitir um único canal.

         Juntando esses sinais, eles criam sua própria plataforma de conteúdo internacional, adicionando legendas conforme necessário, que são organizadas em centenas de transmissões de vídeo, entregues por poderosos servidores na ‘nuvem’ e hospedados na internet, garantindo alcance mundial e alta qualidade de sinal.

         Para burlar a criptografia, os piratas contratam especialistas que criam softwares para roubar o conteúdo HD diretamente do TV ou do decoder legal. Os brasileiros estão tão acostumados com essas emissoras piratas estrangeiras que poucos se perguntam por que, no meio da programação local, às vezes aparecem legendas chinesas na tela.

         Para abastecer o próspero mercado brasileiro, centenas de milhares dessas caixas são exportadas da Ásia para o Paraguai, onde fazem parte de um fluxo de bilhões de dólares em contrabando – que inclui cigarros, cocaína e softwares piratas – cruzando a fronteira com o Brasil. Uma vez aqui, as caixas pretas são transportadas até os revendedores que trabalham com os comerciantes de rua, como o que vi na Santa Ifigênia, em São Paulo.

         Em um único quarteirão, encontrei mais de 40 pontos oferecendo Black Box com o software pirata instalado. Programadores clandestinos se ofereceram para personalizar as caixas com softwares adicionais por mais US$ 15. Um vendedor disse que vendia em média de 20 a 30 caixas por dia. Apontando para uma prateleira quase vazia, ele disse: “É onde elas estavam”.

         Também vi vendedores da caixa distribuindo panfletos para acesso a uma plataforma pirata chamada My Family Cinema, que anuncia “mais de 60.000 filmes e séries”. Os folhetos brilhantes prometem “Uma Revolução na Smart TV” e acesso livre “a mais de 250 canais, a maioria em Ultra HD” com conteúdo para toda a família, incluindo esportes, programas infantis, séries e até canais para adultos. O negócio é tão profissionalmente organizado e executado que alguns consumidores podem acreditar que estão pagando uma empresa legítima.

         “Essas são organizações bem estruturadas”, disse Pascal Metral, um dos principais advogados do setor. “Algumas pessoas na Ásia chamam de negócio, e outras chamam de pirataria. Em nossa cultura, nós chamamos de crime organizado”.

Pesadelo na execução

         Alguns governos latino-americanos demoraram a avaliar o alcance do problema, muito menos agir. Mas outros estão lutando. Em uma corrida para recuperar o atraso, os líderes do setor estão elaborando legislação, financiando cúpulas antipirataria e compartilhando um modelo de legislação. O desafio é enorme, em parte porque as operações piratas são ágeis e muitas vezes internacionais.

         No Brasil, estima-se que 90% dos sinais ilegais baixados vêm do Exterior – principalmente da Europa Oriental e China. Para combater esse novo fenômeno, as principais empresas do setor na América Latina formaram a Aliança Contra a Pirataria da TV por Assinatura e desenvolveram um laboratório de crimes cibernéticos capaz de medir o tráfego ilegal e ajudar nos processos. “A pirataria contra a qual estamos lutando exige recursos. Você pode ver centenas de milhares de usuários com transmissões ilegais recebidas de uma única organização pirata. Intimamos o PayPal e sistemas similares de pagamento, e tivemos uma ideia de como é caro para essas organizações pagarem os servidores”, disse Metral, que lidera a unidade de inteligência antipirataria da NAGRA. “Um cara tinha 1 milhão de dólares apenas em pagamentos para empresas de hospedagem”.

         Em julho de 2018, uma queixa criminal da FoxNetworks e da Aliança Contra a Pirataria na TV por Assinatura levou a uma operação da polícia chilena em sete locais de Santiago. Oito pessoas foram presas e mais de 10.000 computadores apreendidos, incluindo servidores com os nomes e hábitos de visualização dos 50 mil assinantes da rede clandestina, distribuídos do Panamá até o Brasil. “Esperamos que isso estabeleça um precedente para toda a região. Apresentamos ações legais em diferentes países contra outras redes criminosas com um modus operandi similar”, disse Daniel Steimetz, diretor de antipirataria do FoxNetworks Group Latin América.

         No Brasil, as autoridades estão trabalhando com a polícia em todo o país para coordenar a remoção de redes de transmissão e preparar apreensões de servidores e armazéns. Na cidade brasileira de Foz do Iguaçu – na fronteira com o paraíso contrabandista paraguaio de Ciudad Del Este – 153 mil caixas de cabos ilegais foram confiscadas em 2017. No mesmo ano, em Porto Alegre, a Polícia Federal prendeu uma gangue que, segundo estimativas, havia importado cerca de 90 mil caixas pretas ilegais do Peru, que depois revendiam por até US$ 500 cada.

         O governo do ex-presidente Michel Temer, que deixou o cargo em 1° de janeiro, foi extremamente ativo para fortalecer a legislação antipirataria – e também influenciar a opinião publica. “Um dos desafios que enfrentamos é fazer as pessoas perceberem como são prejudicadas pela pirataria, ou quanto a pirataria é prejudicial à sociedade e ao Estado”, disse o então ministro da cultura, Sergio Sá Leitão. “A pirataria é um crime, é um roubo, é um assalto da propriedade de outro”.

         Outros ecoaram esse esforço para educar o público sobre o que exatamente é a pirataria. “O contrabando foi importado por um grupo do crime organizado. Você entregou seu dinheiro a um grupo do crime organizado”, disse Vanessa Neumann, autora do livro Blood Profits: How American Consumers Unwittingly Fund Terrorism, no lançamento da versão em português em São Paulo. “É por isso que você acorda uma manhã e descobre que sua polícia não responde e seu governo não está trabalhando para você – porque você financia a corrupção”.

         No entanto, transmitir essas mensagens tem sido uma batalha difícil. Quando as autoridades brasileiras anunciaram uma operação contra os serviços ilegais de TV em 2018, uma pesquisa mostrou que 95% do público se opôs à medida. “Nossa sociedade acha que esses mercados ilegais devem ser permitidos. Essa é a nossa realidade em toda a América Latina”, disse Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade no Brasil. “Todos dizem que é importante ser ético, mas quando eles vêem o produto a um preço mais baixo, dizem ‘OK’, e compram”.

          A repressão sobre grupos piratas no Brasil produziu vitórias fugazes. Depois de passar meses investigando e recebendo ordens judiciais para fechar uma grande rede de transmissões, os reguladores e a indústria aplaudiram quando a transmissão ilegal foi suspensa. Porém, horas depois, o software instalado nas caixas estava vinculado a servidores alternativos e a rede clandestina estava de volta e funcionando. “Os chineses usam suas próprias redes (servidores) e, quando ações legais encerram seus serviços, as caixas migram imediatamente para a Amazon”, disse Antonio Salles Neto, que trabalha na unidade de inteligência antifraude da ABTA (Associação Brasileira de TV por Assinatura). “Eles se escondem dentro da Amazon e não é possível desligá-los”.

         Em julho de 2018, o Ministério da Cultura do Brasil inaugurou uma nova divisão para coordenar as investigações sobre crimes contra a propriedade intelectual. Comitês do governo brasileiro nos ministérios da Cultura e da Justiça estão realizando conversas bilaterais com Espanha, Chile e Argentina para discutir campanhas contra redes piratas. “Com este novo órgão, daremos a devida atenção, dimensão e alcance que os direitos autorais merecem”, disse Marcos Tavolari, que chefiou a nova Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual.

         Entre as táticas consideradas pelo governo brasileiro está acelerar o bloqueio de sites que hospedam conteúdos pirata. Nos esforços para impedir a pirataria de eventos esportivos ao vivo, não se pode esperar 48 horas por uma ordem judicial. O governo brasileiro está estudando campanhas de esclarecimento junto a provedores de conteúdo como a Premiere League, que teve poderes extraordinários concedidos pelo judiciário britânico. Para combater a pirataria ao vivo de partidas de futebol, a Premiere League tem uma ordem pré-aprovada para fechar os servidores que retransmitirem seus jogos.

         Em novembro último, a lei espanhola foi modificada para aprimorar o bloqueio desses sites, o que foi aprovado por Gustavo Pupo-Mayo, presidente da Associação de Programadores de Televisão da América Latina. “O resto do mundo deveria seguir esse exemplo”.

         Outros líderes do setor foram mais filosóficos. “Sempre teremos uma lacuna entre nossa compreensão da tecnologia e nossa compreensão legal. Isso vem acontecendo desde Galileu”, diz Salles Neto, da Associação Brasileira de TV por Assinatura. O importante é levar o problema a sério e agir, disse ele. “Hoje, a vida dos piratas e muito fácil”.

 

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