Privacidade online: quem quer e quem não quer

Por Orlando Barrozo

O episódio Wikileaks, em que milhares de documentos secretos do governo americano vazaram, provocando um início de crise diplomática internacional, escancarou o problema da privacidade (ou falta de) na internet. De repente, parece que todo mundo ficou preocupado com essa “ameaça” – inclusive aqueles que vêm usando as ferramentas digitais para bisbilhotar segredos alheios ou expor detalhes de suas próprias vidas.

O tema é mais complicado do que parece, porque envolve não apenas as novas mídias – e seus superpoderes – mas também o caráter do ser humano. É quase uma discussão filosófica. Até que ponto você gosta de compartilhar detalhes de sua vida com outras pessoas? E qual é o seu interesse nas intimidades alheias? Como cidadão, sente-se você ameaçado por provedores ou entidades, digamos, mais altas, como governo, polícia, Receita Federal, ou mesmo os responsáveis pelas redes de relacionamento? E o que sugere que seja feito para conter essas ameaças?

De uma hora para outra, sentimo-nos diante de nossos computadores numa situação semelhante àquela que vivem os turistas em viagem, quando têm que passar pelos controles de segurança dos aeroportos. Embora não sejamos terroristas, somos obrigados a nos submeter a uma série de restrições (e muitas vezes constrangimentos), em nome da tranquilidade geral. Na internet, parece, começa a acontecer o mesmo. Para que possamos continuar usando, temos que nos sujeitar a regras de convívio que nem sempre são agradáveis.

Todos os que usam computador já devem estar acostumados aos anti-vírus, programas que precisam ser instalados para evitar (ou pelo menos tentar) a invasão de pragas digitais. E todos os que frequentam sites ilegais (e quem não o faz?) sabe o risco que está correndo. Ainda assim, a maioria age como se nada tivesse a ver com isso, mais ou menos como as famílias que vivem nos morros das grandes cidades, em áreas sujeitas a deslizamentos e outras catástrofes, mas dali não arredam pé.

O que houve com o Wikileaks pode ter sido motivo de piada (já ouvi algumas) e zombaria, por parte dos que acham que tudo na internet deve ser liberado. Parece que estão olhando apenas um lado da moeda. Apenas para relembrar: o site especializou-se em divulgar informações sigilosas e/ou confidenciais, daí adotando o próprio nome (leaks = “vazamentos”, em inglês). Chegou ao ápice esta semana, ao divulgar documentos secretos, em que investigadores e oficiais do serviço de informações e até ministros do governo americano trocam comentários sobre governantes de outros países, especialmente os que não são muito simpáticos aos EUA. A divulgação, é claro, deu mais munição aos críticos da política externa americana e obrigou o governo Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, a pedirem desculpas em público.

Como reação, o governo sueco acionou a Interpol para caçar por todo o planeta o sr. Julian Assange, fundador do Wikileaks, acusado em seu país por crimes sexuais que, até então, eram pouco citados. Governos de países como França, Alemanha e Reino Unido deram início a investigações próprias, visando punir personagens citados nos documentos. Ao mesmo tempo, os provedores que hospedam o Wikileaks em vários países anunciaram que estavam interrompendo o serviço, assim como a Amazon.com, que lhe fornecia os servidores. Ou seja, o Wikileaks foi colocado contra a parede e Assange de repente virou inimigo público, quem sabe tão perigoso quanto Bin Laden e outros do mesmo calibre.

A discussão que se levanta, portanto, é se um site (ou qualquer veículo de comunicação) tem o direito de divulgar documentos guardados por governos – e que, por definição, são secretos. Na teoria, se são propriedade de um governo, pertencem também ao povo do país. Levando o raciocínio ao extremo, devem então ser de conhecimento público. É o que diz, por exemplo, a Electronic Frontier Foundation, entidade sem fins lucrativos, sediada em San Francisco (EUA), que defende ardorosamente a “liberdade total” na web.

Como em tantos outros casos desde que a internet se tornou a mídia mais abrangente do planeta, essa “liberdade total” lembra um pouco a parábola de George Orwell em “1984” – todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que outros. É a liberdade para roubar conteúdos alheios, divulgar imagens pornográficas, invadir contas bancárias, clonar senhas etc. Mas não é a liberdade para ser investigado, responder a processos na Justiça, indenizar quem teve prejuízo com ações desse tipo. É a liberdade de um lado só.

Mesmo assim, o debate é interessante porque coloca o ser humano diante de alguns de seus principais fantasmas. Será que estou cometendo um delito ao entrar em determinado site? O que será que o Google e o Facebook fazem com os dados que têm a meu respeito? Será que o fisco sabe como gasto o meu dinheiro? Será que meu chefe tem condições de descobrir se eu, em vez de trabalhar, fico vendo mulher pelada no computador?

O jornal americano The Wall Street Journal iniciou, meses atrás, um primoroso levantamento chamado What They Know (“O Que Eles Sabem”), cujo objetivo é justamente responder a perguntas como essas. Alguns tópicos da série ganharam títulos como “Seus Segredos São uma Mina de Ouro”, “Detalhes de Sua Vida Pessoal Expostos nos Maiores Sites”, “Anonimato, Só no Nome”, “Espionagem pelo Celular”, “Como Proteger a Privacidade de Seu Filho”, e assim por diante. Um dos melhores capítulos explica como as empresas utilizam os cookies – informações gravadas em código, que entram no computador toda vez que acessamos um site – para detectar os hábitos dos usuários e, a partir daí, enviar-lhes mensagens publicitárias e/ou promocionais. Talvez você não saiba, mas aqueles pop-ups que aparecem em sua tela de vez em quando podem vir exatamente daí.

Se o Facebook recentemente teve que mudar sua política de privacidade, após queixas de usuários, e o Google está respondendo a processos em vários países sob a acusação de “invasão de privacidade”, significam sinais de fumaça. Pelo menos, algumas pessoas estão incomodadas com o “excesso de liberdade” na web e não querem pagar esse preço. Mas ainda é muito pouco, não? Meses atrás, descobriu-se que agentes da Receita Federal brasileira violaram dados de contribuintes por motivos políticos, e ninguém falou mais no assunto. Os acusados sequer foram punidos. Já perdemos a conta das denúncias sobre dossiês de vários tipos, montados por funcionários de governo que tiveram acesso a dados que deveriam ser protegidos por sigilo.

Por aqui, não sei se feliz ou infelizmente, ainda não tivemos o nosso Wikileaks.