Antes mesmo de Sinatra, a primeira voz estrangeira que recordo ter ouvido no rádio, ainda criança, foi a de Tony Bennett. Não por acaso, em seu obituário, a revista de jazz Down Beat começa lembrando que Bennett – de batismo, Anthony Dominick Benedetto, 03/08/1926, filho de pais italianos residentes em Queens, Nova York – surgiu para a música mundial na mesma época em que a Rainha Elizabeth II foi coroada. Como sabemos, ela se foi em 2022 após o reinado mais longevo da história. Pois Tony esteve conosco por mais de 70 anos traduzindo com sua voz mágica os sentimentos de várias gerações.

É, de longe, a mais longa carreira de um artista popular até hoje, embora nunca seja demais repetir que grandes artistas nunca morrem, pois sua arte pertence à História, registrada em discos, vídeos etc. Também por isso, foi duro perceber que o fim estava próximo quando li, em 2021, sobre a batalha que desde 2016 Bennett travava contra o Alzheimer.

Àquela altura, segundo uma extensa reportagem do site AARP.com, dedicado aos cuidados com pessoas idosas (vejam aqui), Bennett já não tinha controle sobre suas ações. Para preservá-lo, a esposa Susan e os quatro filhos haviam decidido que ele não apareceria mais em público nem daria entrevistas.

Sem voz para falar, só para cantar

Mas Susan contou ao repórter John Colapinto um pouco da rotina diária do marido, que de vez em quando tinha lapsos de soltar a voz como nos velhos tempos, quase fazendo estremecer as paredes do apartamento, de cuja janela se pode contemplar o Central Park. Assim descreveu Colapinto: “A neurociência ainda não conseguiu explicar como um homem com fala tão hesitante – cuja memória de eventos, pessoas e lugares em grande parte se perdeu – é capaz de, ao ouvir trecho de uma canção, cantar com tal beleza e expressividade”.

Sim, Bennett quase não podia mais falar, “apenas” cantar… e com aquela voz, talvez herdada dos grandes tenores italianos. Segundo Susan, “ele não é mais o velho Tony. Mas, quando canta, ele é, sim, o velho Tony”. Agora que essa voz se calou, vale a pena lembrar aos mais jovens que, baixinho, tímido e julgando-se feio, Bennett demorou alguns anos para se fazer notar no show-business americano. Sua gravação de “Because of You”, sucesso dos anos 30 que ele recriou em 1951, marca o início de uma carreira sem igual.

Quando se retirou, após o disco “Love for Sale” em dueto com Lady Gaga (2021), o Alzheimer já havia vencido. Não foram fáceis para ele os dias de ensaios e gravações, embora os relatos de bastidores indiquem que Bennett estava sempre bem-humorado, quase tanto quanto três anos antes, quando lançou “Love is Here to Stay”, disco de standards em dueto com Diana Krall.

Foram mais de 80 discos oficiais, e uma infinidade de coletâneas, e é possível afirmar que em todos “aquela voz” permaneceu intacta. Sem nunca abandonar o chamado american songbook, que contém as obras-primas de compositores como Cole Porter, George Gershwin, Harold Arlen e outros, Bennett teve outra capacidade invejável: misturar-se aos jovens para compartilhar com eles suas canções favoritas. E ser muito bem recebido! Foi assim em 1994, quando se tornou o primeiro artista das antigas a gravar um “MTV Unplugged”, na época em que esse era território exclusivo de roqueiros.

E assim pode-se dizer, como na Downbeat, que Tony Bennett foi uma espécie de sequoia, grande e resistente, carregando na voz durante sete décadas as melhores canções de todos os tempos, em meio aos ventos de tantas modas que, assim como surgiram, desapareceram.

Aqui, o link para uma playlist de Bennett no Spotify. Abaixo uma seleção com 10 de seus melhores discos:

Count Basie Swings/Tony Bennett Sings, 1959

In Person! (ao vivo), 1959

I Left My Heart in San Francisco, 1962

At Carnegie Hall (ao vivo), 1962

I Wanna Be Around, 1963

The Rodgers & Hart Songbook, 1973

The Tony Bennett/Bill Evans Album, 1975

Together Again (com Bill Evans), 1976

Steppin’ Out, 1993

Bennett Sings Ellington: Hot & Cool, 1999

The Silver Lining: The Songs of Jerome Kern, 2015

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