Estado expande poder e cria novos riscos

Por Valdo Cruz e Julianna Sofia*

Alheio a críticas e evocando o modelo do Estado forte, o governo Lula usou no segundo mandato fundos de pensão de estatais e o BNDES para aumentar sua influência em vários setores da economia, numa política que embute dois riscos. O primeiro é o de uma crise fiscal no médio prazo; o segundo, a consolidação de um empresariado dependente de juros subsidiados, a partir de estratégias voltadas para os “amigos do rei”- o que pode afetar a competição em alguns setores.

Montada no segundo mandato, essa política direcionou recursos do BNDES e dos principais fundos de pensão ligados a estatais federais para modelos de reestruturação empresarial desenhados dentro do Planalto – como a liberação de recursos para a fusão de Oi com Brasil Telecom, de Votorantim Celulose com Aracruz ou de Sadia com Perdigão. O presidente Lula chegou a chamar diretores de fundos para reuniões em Brasília, a fim de pressioná-los a seguir suas diretrizes, além de cobrar de empresários investimentos planejados pela União em troca de recursos mais baratos do BNDES.

Segundo cálculos de economistas, o subsídio do Tesouro nos empréstimos do BNDES pode chegar à casa de R$ 8,6 bilhões por ano, praticamente o mesmo valor do corte que o governo fez no mês passado para tentar frear a economia e evitar pressões inflacionárias. A Folha listou pelo menos dez grandes operações ou planos de investimento que só se materializaram por conta da pressão direta de Lula. São casos em que o presidente usou o poder de fogo dos fundos de pensão e que, em várias situações, tiveram como personagens empresários com relação próxima ao Palácio do Planalto.

REDE DE INFLUÊNCIAS

A estratégia petista, segundo líderes da oposição, foi costurada para aumentar a rede de influência do governo sobre grupos empresariais. O ex-presidente FHC diz que ela representa um risco político ao criar uma “forte conexão entre o setor privado e um grupo partidário”. O líder do DEM na Câmara, Paulo Bornhausen (SC), acrescenta que “quem é amigo do rei tem mais facilidades de receber recursos”.

A tese oposicionista encontra ressonância entre ex-colaboradores de Lula. Para Elizabeth Farina, que presidiu o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) entre 2004 e 2008, há um processo deliberado do governo federal de reestruturar setores econômicos, mas com direcionamento da ajuda estatal. “Essa estratégia é muito nítida no segundo mandato. Há a intenção de depurar a estrutura produtiva, por achar que o desenho é ineficiente”, afirma Farina. “O problema é que, muitas vezes, isso é feito por uma malha de relações extramercado, com discricionariedade do governo, o que traz riscos e incertezas.”

Além disso, diz Gustavo Loyola, ex-presidente do BC no governo FHC, essa política cria um empresário pouco crítico, altamente dependente das “benesses do setor público”. Para ele, “entramos numa fase de capitalismo de favores”, que usou a crise como pretexto. O risco é essa tendência se acelerar.

CUSTOS E BENEFÍCIOS

Para o ex-presidente do BC Armínio Fraga, essa política tem seus custos e benefícios. Segundo ele, é inegável que o BNDES e os fundos se mostraram instrumentos eficientes durante a crise, mas essa política não pode se perpetuar. Há riscos fiscais e a consequente “perda de eficiência e inibição de expansão de outros setores”. Armínio lembra que esse modelo “já existia” antes, e a diferença é que foi “turbinado” no governo Lula. No período tucano, os fundos de pensão foram estimulados a participar do processo de privatização das teles e da Vale. No de Lula, a se associar a empresas em projetos de interesse do governo.

A atuação do BNDES e dos fundos de pensão, além da do BB e da Caixa Econômica Federal, garantiu a realização, nos últimos anos, de grandes operações de reestruturação da economia nacional. Foi por meio do banco de fomento e dos três principais fundos de pensão ligados a estatais federais que o Planalto consolidou a fusão Oi/BrT. Além da participação acionária, o BNDES emprestou R$ 6 bilhões para concretizar o negócio. O BB entrou com R$ 4 bilhões. O governo ainda alterou a legislação para permitir a fusão.

O BNDES também desembolsou R$ 400 milhões na fusão de Sadia e Perdigão. Depois de a Sadia, da família do ex-ministro Luiz Fernando Furlan, ter amargado perdas elevadas com aplicação no mercado de derivativos, o negócio foi a alternativa para salvá-la. Antes da fusão, o BNDES era o maior financiador da Sadia.

Também por conta de perdas com operações no mercado de derivativos, Aracruz e VCP (de Antônio Ermírio de Moraes) contaram com a ajuda do BNDES para montar a operação que resultou na criação da Fibria – compra da Aracruz pela Votorantim. Além disso, a VCP foi capitalizada indiretamente com a venda de participação expressiva do Banco Votorantim para o BB.

Na última etapa da reestruturação do setor petroquímico nacional, a Ipiranga foi comprada por Petrobras, Braskem e Ultra. A estatal levou a parte menos nobre no segmento de distribuição, embora tenha pago valor maior. A Braskem saiu fortalecida na operação, ficando com os mercados de distribuição mais relevantes. Além disso, no fim do primeiro mandato, os fundos de pensão e o BNDES montaram uma operação para salvar a Brasil Ferrovias, que controlava a Ferronorte. Foi injetado R$ 1,4 bilhão, com a incorporação da empresa pela ALL, que conta com a participação dos fundos. Agora, Lula cobra das entidades de previdência complementar investimentos na Ferronorte.

O governo Lula diz que a “visão equivocada” de que o Estado não deve usar instrumentos como BNDES e fundos de pensão como indutores do crescimento “explica por que o período de FHC registrou aquele pibinho”. A avaliação é do ministro Paulo Bernardo (Planejamento), numa referência ao crescimento da economia registrado nos oito anos do governo FHC – média de expansão do PIB de 2,3%, ante 3,9% no período Lula, caso se confirmem as expectativas de avanço de 6% neste ano. Ele diz que, enquanto os tucanos usaram os fundos e o BNDES para privatizar empresas a “preço de banana”, Lula os utiliza para fortalecer empresas brasileiras, manter empregos e acabar com deficiências de infraestrutura. “Isso é gestão, buscar o crescimento, não deixar que o mercado resolva tudo, entregando dinheiro público sem cobrar contrapartidas.”

A chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, ironiza as críticas de que o governo estaria praticamente “privatizando” o caixa do Estado ao bancar fusões de empresas e megaprojetos como as usinas hidrelétricas na Amazônia. “Estamos entre a cruz e a caldeirinha. Num momento, somos criticados de sermos estatizantes. Noutro, ao financiarmos empresas privadas, de sermos privatizantes do dinheiro público”, afirma.

Erenice rechaça as críticas ao modelo adotado no governo Lula. “Não concordo que façamos uso politico dos fundos. Concordo, sim, que o governo busca sempre que possível a participação deles nos investimentos estratégicos.” E alfineta ainda o período FHC. “Se isso é uso político, e o que foi feito na privatização do setor de telecomunicações no governo anterior?”

Diretor de Planejamento do BNDES, João Ferraz reconhece que os empréstimos do Tesouro para o banco têm um custo fiscal, mas não concorda que essa conta chegue a R$ 8,6 bilhões. Segundo ele, o banco cumpre seu papel de financiador de longo prazo e, durante a crise, o governo não tinha outra saída senão usar recursos do Tesouro para bancar o financiamento da economia. Ele defende a ação do BNDES nas fusões. “Nossa economia passa por mudança patrimonial, de concentração, normal em todos os países, e o governo tem papel importante nisso.”

*Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 07/06/2010