Há 30 anos (28/09/1991), o mundo se despedia de Miles Davis, que alguns consideram ter sido o maior músico do século 20. A notícia correu o mundo, o que é de costume, como se Miles, o artista, tivesse de fato morrido ali. O que me fez lembrar, na época, de uma frase de John Lennon em outra data histórica: 16/08/1977, morte de Elvis Presley.
Naquele dia, um repórter da antiga Rolling Stone telefonou para Lennon em busca de um depoimento. “Elvis morreu hoje? Para mim, Elvis já tinha morrido em 1960”, reagiu o ex-beatle com seu famoso sarcasmo. Era natural. Lennon – como dez entre dez garotos nos anos 1950 – idolatrava Elvis. Até que este começou a abandonar sua matriz roqueira para virar atração nos cassinos de Las Vegas.
Meu caso com Miles é meio isso. Tenho a maioria de seus discos até 1970, o que inclui duas décadas com o que de melhor o Jazz produziu então, não só por Miles, mas pelas dezenas de músicos que influenciou ou orientou quando estava sóbrio e ainda não era milionário.
Até 70, haviam sido cerca de 50 álbuns (LPs) tendo seu nome como protagonista. E, em todos, Miles personificava aquilo que o jazz tinha (e ainda tem, oras…) de mais sagrado: criatividade para improvisar e nunca tocar (ou cantar) uma peça duas vezes da mesma forma. Como tudo continua em catálogo, qualquer interessado pode conferir hoje para perceber nessa trajetória a preocupação (obsessão) de estar sempre à frente, fosse como solista, arranjador ou líder.
No final dos anos 1960, porém, algo aconteceu. O rock aconteceu. Miles decidiu – e quando Miles decidia ninguém era capaz de demovê-lo – dar uma guinada em sua música, aderindo aos sons eletrônicos. O marco dessa virada é o álbum Bitches’ Brew (1970), mas os dois anteriores – Filles de Kilimanjaro (68) e In a Silent Way (69) – já continham sinais de fumaça. Era a ruptura com toda a tradição do jazz e do blues, mudança que encantou muitos fãs (e atraiu novos), tornando seus shows verdadeiras celebrações.
Mas acho que, a partir dali, Miles Davis deixou de ser um músico – um dos grandes de sua geração – para se tornar um personagem. Melodias, harmonias, partituras, ensaios minuciosos e um perfeccionismo quase doentio pareciam não ser mais prioridade.
Lembro de tê-lo assistido em São Paulo em 1985, quando tocou quase o tempo todo de costas para a plateia, hábito que vinha cultivando mundo afora. Em certo momento, largou o trompete e sentou-se a um sintetizador, brincando com os efeitos sonoros.
Foi quando me dei conta: o Miles revolucionário não existia mais, o que víamos era quase um pastiche, um ser embriagado na própria genialidade e à procura de um rumo. Que, aliás, nunca mais encontrou.
Assistindo anos depois aos vários filmes e vídeos produzidos sobre sua vida, por exemplo Miles Ahead (em português, A Vida de Miles Davis, 2015, Netflix), em que Don Cheadle lhe faz uma quase caricatura, foi possível entender parte das razões da tal “virada”. Coisa de gênio e que, por isso, dispensa explicações. Continuo até hoje ouvindo o velho Miles Davis. Aqueles seus discos pré-70 me bastam.
Para quem se interessar, estes são meus favoritos:
Conception (OJC, 1951) – Participações de três dos maiores saxofonistas da história: Stan Getz (tenor), Lee Konitz (alto) e Gerry Mulligan (barítono).
Birdland 1951 (Blue Note) – Com Sonny Rollins, Charles Mingus, J.J.Johnson e outros.
Miles Davis and The Modern Jazz Giants (Prestige, 1954) – Thelonius Monk, John Coltrane, Milt Jackson etc.
Birth of the Cool (Prestige, 1957) – Mulligan, Konitz, Max Roach, Gil Evans.
Round About Midnight (Columbia, 1957) – Coltrane, Red Garland, Paul Chambers, Philly Joe Jones.
Cookin’ with the Miles Davis Quintet (Prestige, 1957) – Idem
MIlestones (Columbia, 1958) – Idem, mais Cannonball Adderley.
At Newport 1958 (Columbia, 1959) – Coltrane, Adderley, Bill Evans, Chambers, Jimmy Cobb
Kind of Blue (Columbia, 1959) – Coltrane, Adderley, Evans etc.
Seven Steps to Heaven (Columbia, 1963) – Herbie Hancock, Ron Carter, Tony Williams.
E.S.P. (Columbia, 1965) – Wayne Shorter, Hancock, Carter, Williams.
Todos esses discos foram lançados depois em CD e estão disponíveis no Spotify. As datas são dos LPs originais. Clique aqui para ver a discografia completa.

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