No último 25 de outubro, completaram-se 47 anos da morte do jornalista Vladimir Herzog. Foi um dos acontecimentos mais marcantes da história brasileira.

Eu estudava Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP, onde Herzog era um dos professores, além de diretor de Jornalismo da TV Cultura. O ano de 1975 vinha agitado desde o início, quando eclodiu na ECA uma série de protestos contra a censura e o afastamento de alguns professores. Em maio, aconteceu a primeira greve de estudantes na Universidade desde 1968.

Considerando que vivíamos em plena ditadura militar, foi um protesto e tanto! Neste link, alguns relatos.

Naquele sábado à noite, eu dava plantão na sucursal paulista do jornal O Globo, que apoiava ativamente o governo. Lá pelas 10h da noite, toca o telefone. Atendo, e uma voz nervosa me passa as ordens: “Anota aí, garoto, essa notícia tem que entrar sem falta no jornal de amanhã, OK?”

Uma voz que metia medo

Para quem não sabe, as edições de domingo da maioria dos jornais fechavam mais cedo, para poderem estar na maioria das bancas nas primeiras horas da manhã. Ainda hoje é assim. Minha tarefa era ficar de plantão para o caso de surgir uma notícia urgente que merecesse entrar em algum canto do jornal. E enviar a notícia por telex à sede do jornal, no Rio.

A voz do outro lado da linha era do Ademar, figura estranha que metia medo pelo jeito nada simpático, e também porque era militar. Ademar era o setorista do 2º Exército, encarregado de transmitir as notícias que ao governo militar interessava divulgar.

Não o conhecia direito, mas sabia que seus textos tinham que ser publicados na íntegra, sem tirar nem por uma vírgula sequer. E ele não perdeu tempo:

“O Comando do 2º Exército informa que o jornalista Vladimir Herzog suicidou-se na tarde de hoje, nas dependências do DOI-CODI. O jornalista havia comparecido para depor às 9h da manhã e foi encontrado já morto por volta das 17h”.

Sem maiores explicações

Até pensei em perguntar por que, se o “suicídio” ocorrera à tarde, eles só estavam fazendo o comunicado tarde da noite. E, se era um depoimento, como é que o mantiveram lá o dia inteiro e permitiram o suicídio? Só que aquelas circunstâncias não eram, digamos, apropriadas para fazer perguntas.

Fiquei ao mesmo tempo assustado e agoniado para enviar logo a notícia ao pessoal do Rio. O susto foi por nada saber sobre  atividades políticas de Herzog, que era uma pessoa muito discreta.

E eu não fazia a menor ideia de que ele havia sido intimado a depor naquele sábado. Se soubesse, talvez estivesse mais preparado para receber a notícia: era comum na época pessoas serem chamadas a “depor”, sem maiores explicações sobre os motivos, e não voltarem mais. E os que voltavam, frequentemente traziam marcas profundas.

Percebi logo que o tal suicídio havia sido armado. Mas tinha de cumprir minha tarefa de enviar rapidamente a notícia para tentar entrar na edição de domingo.

No dia seguinte, saí de casa cedo procurando os jornais do dia para ver a “cobertura” do suicídio. Em vão, claro. Quando o 2º Exército decidiu soltar a nota farsesca, todos os jornais já haviam fechado; e os militares certamente sabiam disso, daí por que retardaram a divulgação. Talvez esperassem que no domingo a coisa esfriasse.

“Minha” notícia saiu

Felizmente para o país e para a democracia, estavam errados. No domingo, amigos e colegas de Herzog se reuniram no Sindicato dos Jornalistas, então presidido por Audálio Dantas. E dali para a sede da Cúria Metropolitana, onde o inesquecível cardeal D. Paulo Evaristo Arns tomaria a liderança das manifestações de protesto, em parceria ecumênica com o Rabino Henry Sobel.

À tarde, fui até a Redação só para checar se a “minha” notícia havia sido aproveitada. Constatei que O Globo foi o único jornal que publicou a nota no domingo. Uma pequena nota escondida numa página qualquer, mas ainda assim uma notícia histórica (e exclusiva). Somente na segunda-feira os outros jornais repercutiram.

Não posso dizer que fiquei feliz ao ver o texto publicado antes de todos os concorrentes. Não havia como estar feliz naquele domingo. Mas, pela primeira vez na carreira, senti um gostinho muito caro a todo jornalista: o de estar no lugar certo na hora certa.

Eram tempos de medo, terror mesmo, em que na rua, no ônibus, na escola e até no trabalho as pessoas se entreolhavam desconfiadas. E pensar que tem gente com saudade daqueles tempos!

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