Em artigo recente publicado no jornal inglês The Guardian, o “inventor” da internet, Tim Berners-Lee (foto), atualizou seus sentimentos sobre o que imaginava na época e em que seu invento se transformou quase 50 anos depois. Não foi a primeira vez que ele se lamentou: “Eu achava que era só dar aos usuários o poder de navegar para fazer brotar sua criatividade e capacidade de colaboração. Percebi depois que, para isso dar certo, teria que ser de graça, mesmo, para todo mundo”.

Para quem quiser (e puder) ver o artigo, este é o link. Não chego ao ponto de chamar Lee de ingênuo, não se diz isso de um gênio como ele, mas o que vemos hoje no mundo das mídias online é exatamente o contrário do que ele e seus colegas planejavam. Algo que apenas “parece” de graça. E nem precisamos sair do Brasil para constatar.

Mês passado, foi divulgado mais um estudo do NetLab, laboratório de pesquisas de comunicação da UFRJ, que é pródigo em exemplos de mau uso, para dizer o mínimo, dos poderes da web. A equipe do NetLab há anos dedica-se a analisar diariamente o que se publica em sites e redes sociais, com foco em temas de impacto na sociedade, como política, economia, meio ambiente etc. É um trabalho altamente profissional e bem embasado.

 

Buscas, sempre com o mesmo resultado

Seu estudo, realizado durante 38 dias entre os meses de julho e agosto, anotou quase 600 mil recomendações na seção “Principais Notícias” do YouTube. Para quem não está familiarizado, essas recomendações são feitas pelo algoritmo com base no que considera tópicos mais relevantes para o público. Algo similar às buscas do Google. O detalhe é que em TODAS as 600 mil aparecia um mesmo canal de destino: CNN!

A marca sediada em Atlanta é licenciada, no Brasil, ao empresário Rubens Menin, dono da construtora MRV e do Banco Inter, entre outros negócios. O que chamou a atenção dos pesquisadores é que, além dessa estranha predominância, a CNN aparecia em 97% das recomendações como o primeiro veículo de mídia. E, em meio aos milhões de vídeos que circulam diariamente pelo YouTube, os da CNN correspondiam a 17% das exibições, muito acima de todos os demais canais e plataformas.

O resultado foi que os números divulgados de audiência da CNN explodiram nas semanas seguintes, deixando para trás UOL, Globo.com, R7 e outros gigantes. Evidentemente, os concorrentes não gostaram e surgiram suspeitas de favorecimento. O algoritmo, que muita gente considerava “imparcial”, estaria sendo manipulado de forma sorrateira e desleal.

Segundo a diretora do NetLab, Marie Santini, em entrevista ao colega Guilherme Ravache, do jornal Valor Econômico, não foi a primeira vez; aliás, essa prática do YouTube (que pertence ao Google) está longe de ser casual. “Há alguns anos estamos identificando a estratégia do YouTube de forçar todos os canais de TV a oferecer seus conteúdos gratuitamente em sua plataforma”, disse ela.

 

Conexões políticas: cuidado

Para os canais que concordam, as portas do YT se abrem como num passe de mágica, e o algoritmo passa a trabalhar em seu favor. Entenda-se: a emissora que faz isso abre mão de cobrar por seu conteúdo e “transfere” a audiência que teria para o Google/YouTube. Em troca, cresce nas recomendações e pode assim cobrar mais de seus anunciantes, muitos dos quais utilizam a chamada “mídia programática”, onde o algoritmo é que decide para onde vai o anúncio.

 

Além da CNN, que foi a primeira, outras emissoras que aceitaram esse tipo de acordo com o Google (até agora) foram Jovem Pan e Brasil Paralelo. E há elos políticos visíveis entre a Alphabet, dona do Google, e executivos da CNN no Brasil. Google e CNN fazem parte ainda da Esfera, agência de lobby político criada pelo ex-CEO da CNN, João Camargo, uma das que batalham em Brasilia contra o projeto de regulamentação das mídias sociais.

Como naquelas séries em que a cada episódio vai se desvendando um novo link de escândalos, esses episódios precisam ser esclarecidos. Se há quem tema que a IA vai dominar o mundo, como apontamos aqui, é mais urgente pensar em como as big techs, com ou sem IA, já estão dominando. Por enquanto, pense bem quando for fazer sua próxima busca no Google (e no YouTube).

 

Orlando Barrozo é jornalista especializado em tecnologia desde 1982. Foi editor de publicações como VIDEO NEWS e AUDIO NEWS, além de colunista do JORNAL DA TARDE (SP). Fundou as revistas VER VIDEO, SPOT, AUDITÓRIO&CIA, BUSINESS TECH e AUDIO PLUS. Atualmente, dirige o site HT & CASA DIGITAL. Gosta também de dar seus palpites em assuntos como política, economia, esportes e artes em geral.

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