O futuro e os riscos da TV pública

Por Samuel Possebon*

Os governos Lula e Dilma foram tímidos em relação às políticas de democratização das comunicações, notadamente da radiodifusão. A revisão e modernização do ordenamento jurídico do setor, uma pauta recorrente desde 1997, ainda no governo FHC, com vistas a uma regulação técnica e econômica, nunca saiu do campo das minutas. Mas houve avanços importantes, sobretudo no campo da comunicação pública, e da radiodifusão pública mais especificamente. O legado dos governos do PT para as comunicações foi nessa área, e foi algo positivo que o governo interino de Michel Temer, por desinformação, falta de disposição ao debate ou preconceito, corre o risco de jogar fora, como está fazendo com o desmonte irracional da Empresa Brasil de Comunicação – EBC.

O principal expoente dessa política de comunicação pública é, sem dúvida, a própria EBC, estatal que tem sob sua responsabilidade a TV Brasil, a Agência Brasil, a Rádio Nacional da Amazônia, a Radioagência Nacional, e mais seis estações de rádio AM e FM com grande abrangência territorial.

A EBC é a consolidação de uma política prevista pela Constituição, que estabelece a complementariedade entre o sistema estatal, público e privado de radiodifusão, e foi criada pela Lei 11.652/2008, com amplo debate e aprovação pelo Congresso Nacional. A lei nada mais busca do que criar um instrumento público de comunicação como o existente em muitos países desenvolvidos: BBC (Reino Unido), PBS (EUA), France Télévisions (França), Deutsche Welle (Alemanha), TVE (Espanha), RTP (Portugal), RAI (Itália), NHK (Japão) apenas para citar os casos mais emblemáticos. Todas estas empresas estão sujeitas às mesmas discussões que se tem no Brasil sobre a EBC: risco de serem aparelhadas pelo governo, interferência política, dispêndio excessivo de recursos públicos. E todas elas trabalham para corrigir esses problemas e diminuir os riscos com instrumentos de governança, controle público e modelos de negócio alternativos.

Outra ponta do trabalho feito no campo da comunicação pública, e da radiodifusão pública especificamente, vinha acontecendo de maneira mais silenciosa dentro do Ministério das Comunicações, sobretudo a partir da gestão do ex-ministro Paulo Bernardo. Trata-se da organização do campo das rádios comunitárias (criadas por lei no governo FHC, diga-se de passagem), que envolve mais de 4,7 mil emissoras em 4 mil municípios; das emissoras de radiodifusão educativa (486 rádios e 207 geradoras); dos mais de 200 canais consignados pela própria União aos poderes Legislativo (TV Câmara, TV Senado), Judiciário (TV Justiça) e Executivo (EBC); e dos canais digitais da União para Educação, Cultura e Cidadania, concebidos juntamente com o Decreto 5.820/2006, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital.

No campo das comunitárias, houve um esforço importante de desburocratizar e aprimorar os mecanismos de outorga e acompanhamento para evitar o uso indevido dessas rádios, assim como um Plano Nacional de Outorgas (PNO) transparente. No campo das educativas, a principal mudança foi também estabelecer o Plano Nacional de Outorgas e aplicar, efetivamente, a previsão legal de concessão desses canais a entidades ligadas ao próprio Estado (governos estaduais e municipais), universidades e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFETs). Isso busca assegurar que as educativas não sejam objeto de cobiça por políticos e fundações de fachada.

Na área dos canais digitais da União, o avanço maior foi a regulamentação do canal da Cidadania, que já tem mais de 370 pedidos de outorgas e duas autorizações (Uberlândia e Salvador). Importante lembrar que esses canais não são operados pelo Governo Federal, e sim por entidades da sociedade civil e administrações estaduais e municipais. Os canais da Cultura e da Educação foram regulamentados e estavam, no processo de troca de governo, em fase de implementação por seus respectivos ministérios, juntamente com a EBC, sendo que no caso da Educação o embrião deve ser a própria TV Escola, já consagrada e estabelecida há duas décadas, mas que ainda padece com a dificuldade de distribuição aberta (hoje está na TV paga e no satélite).

O argumento mais comum para criticar a comunicação pública, ou não-comercial, é que pouca gente assiste e se consomem recursos preciosos de um Estado sem condições de manter seus serviços básicos.

Primeiro, esse conceito de “ninguém assiste” é relativo. As rádios ligadas à EBC são, em alguns casos, a única alternativa existente. A Agência Brasil é fonte constante dos grandes veículos de imprensa, cobrindo áreas que as redações minguadas já não têm condições de acompanhar, assim como a Radioagência. A TV Brasil, com todos os problemas inerentes ao seu pouco tempo de vida, vinha construindo um portfólio de programas jornalísticos e culturais relevantes, trazia um esforço de pesquisa tecnológica no campo da interatividade que as emissoras comerciais abandonaram e abria espaço para produções nacionais e conteúdos que não interessam a emissoras comerciais, como a programação infantil (quase extinta da TV aberta).

Além disso, é preciso lembrar que existe previsão constitucional e legal para esse sistema público, que ademais é cada vez mais importante para uma população carente de outras formas de comunicação, para quem o acesso aos novos meio digitais e à banda larga ainda é uma realidade distante, e que vive em regiões do país com pouca ou nenhuma atratividade econômica para o sistema de comunicação privado de rádios e TVs.

As emissoras comerciais vivem um momento crítico para seus negócios, muitas sob o risco real de falência, o que muitas vezes compromete a qualidade de programação, com o arrendamento do horário para igrejas e canais de vendas, diminuição dos investimentos em produção nacional de qualidade ou em programas que não tenham atratividade comercial. Sem falar nos desafios que as emissoras comerciais enfrentarão do ponto de vista dos investimentos necessários para se manterem tecnologicamente atualizadas, com a digitalização dos sinais. A comunicação pública, que pode ou não consumir recursos do Estado e pode ou não ser “chapa-branca”, é uma forma de assegurar à população o acesso à informação e ao entretenimento, inclusive onde a iniciativa privada não está  presente de maneira competitiva, e de abrir oportunidade a conteúdos e experimentações que não encontrariam espaço em um mundo regido apenas pela lógica de mercado e da audiência de massa.

Tornar a comunicação pública relevante e eficiente pode e deve ser papel do Estado, independente do governo.

Jogar fora o pouco que se construiu até aqui em torno de um projeto de comunicação pública só trará mais prejuízos à sociedade, na forma de um retrocesso aos anos 90.

Um desmonte irracional da EBC, com ares de macartismo, é uma atitude que não mostra nenhum projeto a não ser o desejo de voltar tudo aos tempos da Radiobrás, em que o foco era a comunicação do próprio governo. O que por si só é um contrassenso, pois o instrumento para fazer isso já existe, no próprio canal NBR (hoje operado pela EBC).

O que faltou desde a criação da EBC foi uma visão integrada do sistema público de comunicação, incluindo os esforços coordenados pelo Ministério das Comunicações, com uma política clara e um projeto de uma empresa pública que ganhasse a independência do governo de plantão e do próprio Estado que lhe dá suporte.

A vinculação da EBC à extinta Secretaria de Comunicação da Presidência fez algum sentido na criação da estatal, mas tornou-se um problema, pois contribuiu para a imagem de uma TV oficial. Vincular a empresa à própria Presidência da República será pior ainda.

Talvez o melhor caminho seja vinculá-la ao ministério que hoje cuida das políticas para o setor de radiodifusão (o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), onde o trabalho de ordenamento e acompanhamento da radiodifusão pública já tem sido feito e onde estão sendo pensadas as políticas para o setor. Vincular ao Ministério da Cultura também seria uma opção. Mas a pior solução, sem dúvida, é matar a EBC e tratar a radiodifusão e a comunicação pública como algo irrelevante.

*Artigo publicado originalmente no site Convergecom