A jornalista inglesa Christiane Amanpour (foto) é uma das estrelas internacionais da CNN. Já foi correspondente de guerra, durante os conflitos da Bósnia nos anos 1990, e comanda um programa semanal de entrevistas que tem ótima reputação. Na semana passada, Christiane foi homenageada em Nova York com o prêmio Burton Benjamin, do Comitê para Proteção dos Jornalistas, uma ONG dedicada à defesa da liberdade de imprensa em todo o mundo. Vale a pena transcrever aqui os principais trechos de seu discurso de agradecimento, em que conta episódios recentes envolvendo perseguições a profissionais de comunicação, a atuação da imprensa durante a vitoriosa campanha de Donald Trump e as manifestações do presidente eleito sobre a mídia em geral (a íntegra do discurso, em inglês, pode ser conferida aqui).
“Nunca imaginei que um dia estaria num palco como este apelando em favor da liberdade de imprensa e pela segurança dos jornalistas americanos em seu próprio país.
“Fiquei chocada ao ler um post do presidente eleito no Twitter, condenando ‘manifestantes profissionais incitados pela mídia’. Ainda não chegamos lá, mas isso é exatamente o que acontece com ditadores como Sisi, Erdogan, Putin, Duterte, os Aiatolás etc. Primeiro, a mídia é acusada de incitar, depois simpatizar, depois se associar – até que os jornalistas são chamados terroristas ou subversivos. Acabam algemados, sentenciados, presos e sabe-se lá mais o quê.
“Uma grande América requer uma imprensa livre e segura. Portanto, este é um apelo que faço para proteção do próprio Jornalismo. Que todos os profissionais de mídia se dediquem a checar os fatos que relatam, sem medo nem favorecimento. Não aceitem ser chamados de vigaristas, mentirosos ou fracassados.
“Aprendi muitos anos atrás, durante a cobertura na Bósnia, que nunca se deve equiparar vítima e agressor, nem criar uma falsa moral. Porque, quando faz isso, você se torna cúmplice dos mais horrendos crimes. Acredito em ser fiel à verdade, não neutro. E acho que precisamos deixar de banalizar a verdade.
“Precisamos estar preparados para lutar mais ainda pela verdade, num mundo que o dicionário Oxford anunciou que a palavra do ano é ‘pós-verdade’. O candidato vencedor nos derrotou, conseguindo falar diretamente com as pessoas, combinando um tsunami de notícias falsas (ou seja, mentiras) com o fato incrível de que a maioria não podia, ou não queria, checar os fatos.
“Um dos principais autores dessas notícias falsas chegou a dizer que hoje as pessoas estão mais estúpidas, compartilhando esse tipo de relato sem checar. Será que a tecnologia acabou com nossa capacidade de discernimento? Com a palavra o Facebook. É hora dos anunciantes boicotarem sites que divulgam mentiras.
“Cito aqui palavras de Wael Ghonim, um dos pioneiros da chamada Primavera Árabe: ‘As redes sociais amplificam a tendência humana de procurar apenas os seus semelhantes. Tendem a reduzir complexos desafios sociais a meros slogans, que reverberam em verdadeiras câmaras de eco que são os grupos formados por pessoas com o mesmo pensamento, em vez de buscarem a persuasão, o diálogo e o consenso. Discursos de ódio e inverdades aparecem lado a lado com boas intenções'”.
“Acredito que estejamos enfrentando uma crise existencial, uma ameaça à relevância e à utilidade de nossa profissão. Hoje, mais do que nunca, precisamos nos comprometer com a busca da verdade no mundo real, onde Jornalismo e Democracia estão em perigo. Potências como a Rússia pagam para publicar notícias falsas, invadindo redes de comunicação democráticas, como já fizeram aqui nos EUA e, pelo que se diz, farão também nas próximas eleições na França e na Alemanha.
“Precisamos lutar também contra um mundo de ‘pós-valores’. Desde quando os valores americanos seriam elitistas? Não são valores de direita ou de esquerda. Não são valores de ricos nem de pobres. Como muitos estrangeiros, aprendi que são valores universais. Pertencem tanto aos mais humildes quanto aos mais poderosos. Sim, como muitos pelo mundo afora, também fiquei chocada ao ver nas eleições que tantos americanos ignoraram aquele balcão de linguagem vulgar, comportamento sexual predatório, insultos e misoginia. O governador Mario Cuomo disse que é possível fazer campanha em verso e governar em prosa. Talvez agora se prove o contrário.
“Um apresentador de rádio diz que a mídia é hostil aos valores tradicionais. Acho que é exatamente o contrário. Viram outro dia o grito de ‘Heil, Victory’ em Washington? Desde quando se aceita antisemitismo neste país?
“O que acontece nos EUA também é importante para outras nações. Gostemos ou não, esta é a única superpotência mundial. Inclusive culturalmente. Os exemplos políticos, e os exemplos de mídia fixados aqui, são rapidamente emulados pelo mundo afora. Nós, da mídia, podemos contribuir para um sistema mais funcional, ou então aprofundar as disfunções políticas. Qual desses sistemas queremos deixar para nossos filhos?
“Da mesma maneira, a política degenerou em divisões partidárias em que as divergências são criminalizadas. É um jogo de soma zero: para eu ganhar, preciso destruir você. Essa dinâmica também afeta os grandes grupos de mídia nos EUA, como já aconteceu no Egito, Turquia e Rússia. Jornalistas foram marginalizados, sob a acusação de serem inimigos do Estado. É preciso parar com isso. Temos muito trabalho pela frente, investigando os malfeitos, responsabilizando os poderosos, promovendo governos decentes, defendendo os direitos básicos e até mesmo descobrindo as forças nucleares que existem na Rússia, na Síria, Coreia do Norte etc.
“Será que não podemos manter nossas diferenças sem ter que nos matar uns aos outros? Na nossa profissão, devemos lutar por aquilo que é certo. Lutar por nossos valores. Muita coisa ruim acontece quando as pessoas ficam sem fazer nada. Vamos lutar para continuarmos sendo relevantes e úteis para a sociedade”.