As enchentes do Rio Grande do Sul quase coincidiram com os eventos que lembram os 30 anos do Plano Real, oficialmente implantado em junho de 1994. Mas é difícil admitir que seja mera coincidência, quando se analisam o que aconteceu no país (e no mundo) nessas três décadas. Mudamos todos, é claro, até porque isso é inevitável. Mas a sensação, do ponto de vista político e econômico, é que mudamos para pior.

Para quem não viveu aquela época, ou quem viveu mas tem memória curta, vale desde já um lembrete. Vivíamos então tempos analógicos, e a digitalização – que propiciou a globalização, a expansão da internet e as comunicações instantâneas – transformou tudo. Trinta anos atrás, precisávamos ir frequentemente a agências bancárias, guardávamos canhotos de nossos talões de cheque (para futuras conferências) e, na hora de declarar I.R., tínhamos de encher pastas e pastas de documentos.

Qual é o seu salário? Não sei…

Agora, alguém se lembra como era viver com inflação de 80% ao mês? Não, você não leu errado: eram mais de 6.000% ao ano!!! Jovens que hoje lutam por um emprego com carteira assinada fazem ideia de como não sabíamos o valor de nossos salários? Todo mês, tínhamos que levar nossa carteira profissional ao RH (que na época era o “Departamento Pessoal”, DP para íntimos) para atualizar os valores.

Lembro de certa vez, ao fazer uma compra a crédito, o vendedor me perguntar quanto eu ganhava e tive que parar pra tentar lembrar. Experiências constrangedoras como essa eram lugar comum. Postos de combustível não abriam aos finais de semana. Para tornar tudo ainda mais dramático, o governo anunciava os aumentos de preço sempre na 6a feira, levando milhares de motoristas a filas quilométricas em frentes aos postos nas noite de 6a.

Cheguei a pagar o equivalente a 2 mil dólares por uma linha telefônica da Telesp, de nada saudosa memória, linha essa que, em geral, demorava dois ou três anos para ser liberada. E, claro, já entraram para o folclore nacional as fotos de supermercados lotados, onde uma das tarefas mais requisitadas era remarcar os preços com aquelas maquininhas de etiquetagem. Todo santo dia.

Um real valendo mais que um dólar

Pois bem, tudo isso foi interrompido em junho de 1994, quando o presidente Itamar Franco assinou o decreto do Plano Real. Seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que nem economista era, ganhou status de estrela a ponto de, no final do ano, ser eleito em primeiro turno, e com larga margem, para suceder Itamar.

Há quem diga que aquilo foi um passe de mágica financeira. De repente, tínhamos uma nova moeda (o Real substituiu o desmoralizado Cruzado), e os preços em reais não eram mais remarcados. Salários, poupança, boletos, aluguéis… tudo agora tinha seus valores fixos, que permaneceram os mesmos ao longo dos meses seguintes. A certa altura, um dólar chegou a valer R$ 1,8. Isso mesmo: com 100 reais, era possível comprar 180 dólares.

A euforia, no entanto, impediu que muita gente percebesse que aquele era apenas um ponto de partida – ou de virada. Junto com a troca de moeda, FHC elegeu-se anunciando uma série de mudanças na legislação fiscal, no gerenciamento dos ministérios e das estatais e na fiscalização das empresas. O diagnóstico de sua equipe era de que o Estado brasileiro estava quebrado, a inflação totalmente fora de controle e o país sem credibilidade para atrair os investimentos necessários.

Cinco anos de reformas

O corte drástico na escalada dos preços e o controle temporário do câmbio abriram espaço para uma série de reformas, decisivas para recolocar o país na trilha do desenvolvimento. Procurem no Google. Entre 1995 e 2000, foram executadas:

*Reestruturação da dívida pública, incluindo as de estados e municípios que serviam apenas aos interesses pessoais de governadores e prefeitos;

*Renegociação da dívida externa, na época a maior do mundo, junto ao FMI, Banco Mundial e Bancos Centrais de vários países;

*Programa de privatização de estatais falidas e/ou perdulárias, incluindo os bancos públicos estaduais (Banespa, Banerj etc);

*Criação das agências reguladoras para setores estratégicos: energia, telecomunicações, aviação, cujo modelo inicial seria desvirtuado anos depois;

*Lei de Responsabilidade Fiscal, que permitia punir governantes irresponsáveis com as contas de seus estados e municípios.

Nada disso teria sido possível se não tivéssemos uma moeda estável, condição crucial para atrair investimentos e dar credibilidade ao país junto a organismos internacionais. Neste link, um interessante podcast conta detalhes da aventura que foi estabilizar a moeda brasileira, primeira parte de um projeto que, por vários motivos, não foi levado à frente. E, no entanto, quase todas essas conquistas hoje parecem enterradas sob os escombros dos indicadores da qualidade de vida dos brasileiros.

Um sonho de país mais justo

Fico devendo para breve outro artigo, específico para analisar os fatos destes trinta anos que resultaram no fim daquele sonho: construir um país mais justo e democrático, com menos desigualdade, empresas saudáveis gerando postos de trabalho, serviços públicos minimamente decentes, corrupção vigiada e punida, moeda estável, crescimento econômico sustentável. E capaz de amenizar os estragos causados por tragédias como a que atingiu os gaúchos.

Muita coisa já foi dita e escrita sobre o Plano Real; há inclusive um filme, Real: O Plano Por Trás da História, disponível no streaming. Talvez seja hora de mostrar, a exemplo da obra-prima Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, como se mata (ou quase) um plano de desenvolvimento bem intencionado.

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