Por Orlando Barrozo
Em mais uma entre tantas ações do gênero divulgadas quase toda semana, a Anatel anunciou dias atrás ter confiscado cerca de 1,5 milhão de aparelhos eletrônicos irregulares. Já comentamos o assunto algumas vezes (aqui, por exemplo), e sempre temos apoiado essas ações, assim como a pressão junto às lojas de e-commerce que vendem esse tipo de produto. Afinal, não faz sentido permitir a venda para depois apreender. Ou faz?
A dúvida me ocorreu ao constatar que a guerra contra a pirataria é mundial, e já dura algumas décadas, com resultados no mínimo duvidosos. Milhões, talvez bilhões, são gastos com a estrutura de combate a esse crime, e as estatísticas confirmam que é cada vez maior a quantidade de pessoas que, de boa ou má fé, consomem produtos piratas.
Esquema internacional
Até alguns anos atrás, pirateavam-se fitas e discos, mídias físicas. Hoje, o que mais rende, pelo visto, é o roubo de sinal através de caixinhas capazes de vencer os bloqueios das operadoras e das provedoras de acesso. Ao que tudo indica, trata-se de um esquema internacional que, pela ousadia e eficiência, remete ao crime organizado.
Nem a onipresente Netflix, indiscutível fenômeno de sucesso, escapa: dizem que algumas caixinhas conseguem oferecer todo o seu catálogo, e com qualidade quase igual. Não deve ser diferente com o Prime Video, da Amazon, e HBO, Disney etc.
Curioso é pensar que todas essas plataformas dependem de estruturas chamadas CDN (Content Delivery Network – “rede de entrega de conteúdo”), que controlam o catálogo do serviço e o acesso dos assinantes a ele. Sem uma boa CDN, nenhuma provedora de streaming funciona.
Máquina não pode falhar
Basta pensar na própria Netflix, com mais de 200 milhões de assinantes mundo afora. Se, digamos, 0,1% deles (200 mil usuários que moram em cidades ou até países diferentes) dão PLAY num filme ou série ao mesmo tempo, o sistema tem que garantir que todos conseguirão assistir sem travamento. É uma máquina que simplesmente não admite falha.
Não vale a pena para a Netflix nem para suas concorrentes (nem mesmo a gigantesca Disney) manter “em casa” uma estrutura de CDN. Esse é um típico serviço a ser terceirizado, já que as plataformas precisam se dedicar 100% à geração de conteúdo – essa é a essência de seu negócio.
Assim, Netflix e as demais empresas de streaming contratam os serviços de armazenamento e gerenciamento junto a fornecedores externos. Tecnicamente, pode se dizer que toda CDN é agnóstica, no sentido de que deve cumprir bem aquela missão, não importante quem sejam os clientes e quais os interesses de cada um. Nenhum provedor vai querer deixar na mão clientes com milhões de assinantes.
Uma CDN nada mais é do que uma rede – podem ser milhares – de servidores interconectados, com altíssima capacidade de processamento e que rodam softwares também de alta complexidade. Montar e manter uma estrutura dessas é coisa para poucos.
Netflix vs Amazon
A maioria das pessoas não faz ideia, mas a CDN que alimenta a máquina da Netflix pertende à AWS (Amazon Web Services), hoje uma das maiores fornecedoras mundiais de infraestrutura para armazenamento e processamento de dados. Isso mesmo: quem sustenta a plataforma Netflix é a Amazon, que vem a ser, ao mesmo tempo, sua grande concorrente com o Prime Video.
Ou seja, da mesma forma que a Samsung fornece displays para a Apple, e as duas são arquirrivais em smartphones, a Netflix depende da Amazon no streaming; e a Amazon certamente não quer perder um cliente assim.
Agora, se os dados da Netflix rodam “dentro” da AWS, e os piratas já conseguem roubar esses sinais, de quem é a culpa? O que explica que conteúdos da Netflix sejam acessados a partir de receptores irregulares (não autorizados) vendidos abertamente no mercado online? Como a Netflix permite isso? E como o admitem também as demais empresas de streaming, inclusive a própria Amazon (Prime Video)?
Marketplace e pirataria
Talvez seja essa, hoje, a maior contradição do mercado de mídia, que em vários países (Brasil inclusive) gasta rios de dinheiro para ajudar a combater a pirataria. No ano passado, um conhecido comerciante colombiano de produtos piratas, Alejandro Galindo, dono de um site chamado Nitro TV, foi processado pela ACE (Alliance for Creativity and Entertainment), consórcio que representa produtoras como Warner, Disney, Universal, Columbia, Paramount e Amazon. O site foi acusado de comercializar conteúdos pertencentes a empresas filiadas à ACE, que conseguiram na Justiça americana tirar o site do ar. Galindo e seus sócios ainda respondem à ação judicial.
O curioso é que, em sua defesa, Galindo utilizou argumento no mínimo criativo: a Amazon, disseram seus advogados, não poderia fazer parte da ação por ser, ela própria, beneficiária da pirataria, já que comercializa em sua loja virtual (diretamente ou na forma de marketplace) equipamentos de acesso a conteúdos piratas.
A “denúncia” levantou suspeitas que alguns especialistas já vinham estudando. Não apenas o Netflix, mas vários serviços de streaming têm suas CDNs hospedadas na AWS. Lá estão inclusive empresas monitoradas por autoridades de vários países que comercializam conteúdos sem a devida autorização dos detentores de direitos.
História de Kafka
Quer dizer, ao mesmo tempo em que age de um lado contra a pirataria, a Amazon estaria servindo de base tecnológica para que os serviços ilegais se mantenham e até proliferem – já que a estrutura da AWS é considerada altamente eficiente. Na prática, a se confirmar essa hipótese, significa que todo o esforço para apreender aparelhos piratas e bloquear sites ilegais poderia ser torpedeado.
Não seria o caso de se cobrar das CDNs maior compromisso? Por que elas aceitam vender serviços para plataformas que distribuem conteúdos não autorizados? É o que vêm se perguntando especialistas em segurança cibernética.
Claro que as receitas da Amazon com a venda de receptores não homologados devem ser ínfimas se comparadas com outros produtos. Mais: calcula-se que aproximadamente 95% do faturamento da Amazon, como grupo, advém hoje da AWS e seus serviços de cloud. Só que, considerando o estrago que os tais receptores podem causar, o prejuízo – aliás, declarado pelas próprias entidades e órgãos antipirataria – é significativo.
Em tempo: existem outros fornecedores de infraestrutura para as plataformas, sendo os mais conhecidos CloudFlare e Akamai, também americanos (veja outros aqui). Mas, diferentemente da AWS, atuam apenas com provedores de CDN, não no armazenamento de dados. E em ambos há clientes monitorados pelas agências antipirataria. Uma grande vantagem competitiva da AWS é o fato de oferecer também a estrutura de armazenamento, serviço contratado por diversas grandes corporações ao redor do mundo.
Quase como numa história de Kafka, o dilema de todos os envolvidos é abandonar o esquema e buscar fornecedores, digamos, mais transparentes; ou deixar que a roda do streaming continue girando e produzindo lucros para todos.
Próximos episódios em aberto
Pensando bem, toda essa discussão tem a ver com o conceito – cada vez mais abstrato – de “neutralidade na rede”. Supostamente, um provedor de acesso, como é o caso de um fornecedor de CDN, deve-se comprometer com a entrega do conteúdo da forma mais eficiente e segura para seu cliente. E não pode fazer distinções de ordem econômica, política etc. Só que, na prática, isso abre espaço para distorções que podem se voltar contra os próprios usuários.
Como se vê, contradições não faltam. Se fosse uma produção da Netflix (ou de qualquer outra, tanto faz), o final dessa série estaria totalmente em aberto.