Um dos temas mais comentados nas redes sociais nos últimos meses vem sendo a chamada regulação da mídia. É também um dos assuntos menos compreendidos pela maioria da população, inclusive jornalistas, intelectuais e formadores de opinião. É muito fácil cair na armadilha de tomar partido em temas como esse, localizados na perigosa fronteira entre política, cultura e economia. O mais comum é deixar de lado os argumentos racionais, e partir para a agressão contra o “outro lado”.

Penso que, se alguém quer de fato contribuir com essa discussão, honestamente e sem preconceitos, deve começar buscando entender o papel da mídia num país democrático. Concordo, não é simples. Com o avanço tecnológico e suas complexidades, a instituição que antigamente era chamada “imprensa” (muitas vezes grafada com “I” maiúsculo) foi forçada a rever muitos de seus conceitos, tanto do ponto de vista puramente operacional – produção e distribuição de conteúdo – quanto nas suas relações com os poderes político e econômico. Tornou-se habitual nos referirmos aos veículos de imprensa como “mídia”, definição que naturalmente remete aos meios eletrônicos de informação. Se a compreensão já era difícil quando havia apenas a “imprensa escrita, falada e televisada”, como identificavam alguns estudiosos décadas atrás, com a chegada da internet o mundo da “mídia” se converteu em algo bem mais intrincado.

Infelizmente, no Brasil – ao contrário de países como Estados Unidos, França e Inglaterra, só para citar alguns – o debate vem sendo enviesado pelo fato de as empresas de comunicação historicamente manterem ligações, digamos, íntimas com os donos do poder. Desde cedo, os governantes brasileiros souberam cultivar – e, quando necessário, apertar ou afrouxar – laços com os órgãos de imprensa, numa promiscuidade que passa bem ao largo dos interesses da população. Isso ocorreu tanto nos períodos ditatoriais quanto nos governos democráticos, e não é diferente hoje, mesmo após quase três décadas do fim do regime militar. Pode-se apontar como ícone máximo dessas relações perigosas a legislação que rege o controle das empresas de rádio e televisão, a maior parte delas hoje propriedade de políticos ou seus prepostos.

Evidentemente, tal situação não será alterada pela vontade do senhores parlamentares e governantes, que se beneficiam dessa afronta à democracia. Países verdadeiramente democráticos trataram de criar normas para monitorar o controle das empresas jornalísticas, evitando que fossem assaltadas pelo poder político (quanto ao poder econômico, é uma outra história). No Brasil, ainda temos dificuldade até em discutir o assunto. Tendemos a encarar a mídia do ponto de vista pessoal ou corporativo, atacando-a quando assume posição contrária aos nossos interessantes e defendendo-a quando nos é conveniente.

Entre os principais analistas sérios e politicamente descomprometidos (pena que não sejam muitos…), parece haver consenso de que é necessário, até mesmo urgente, algum tipo de regulação da mídia. A expressão aqui deve ser entendida como a formulação de uma espécie de “código de conduta” a pautar as atividades de jornais, revistas, sites e emissoras de rádio e TV, de forma a promover o pluralismo e representar os diversos segmentos da sociedade – tudo isso num regime de livre iniciativa e com liberdade de opinião. Um dos problemas é que, tal qual as reformas tributária e trabalhista, tantas vezes prometidas e adiadas, a regulação que se defende varia ao sabor de compromissos políticos.

Ninguém, até hoje, propôs uma regulação da mídia que fosse independente do partido que possa estar no poder e que, portanto, sobreviva em meio às oscilações eleitorais. Há os que confundem (às vezes propositadamente) regulação com “censura”, e há também aqueles que só querem normas para os órgãos de imprensa adversários. Sindicatos de jornalistas, por exemplo, criticam empresas jornalísticas quando estas denunciam escândalos nas entranhas do poder, mas fecham os olhos, languidamente, quando profissionais de imprensa acumulam cargos em empresas públicas, uma excrescência que só tem feito aumentar nos últimos anos. Jornais e revistas vasculham a intimidade de empresas privadas, acusadas de negócios escusos, enquanto seus proprietários mantêm em sigilo atividades igualmente suspeitas. Colunistas e comentaristas econômicos aceitam trabalhar para rádios e TVs públicas e continuam posando de “analistas independentes”.

Talvez nada reflita melhor esse “caos midiático” do que a infinidade de blogs e sites que hoje se ocupam de temas envolvendo o Estado brasileiro, em suas várias instâncias. Um jornalista que se vê desempregado, após anos servindo a chamada “grande imprensa”, é contratado por um empresário ou político, ou mesmo por um partido, para manter um blog em que, sem cerimônia, aluga opiniões e argumentos. Age, assim, de modo semelhante aos artistas que negociam apoios políticos em troca de verbas para a produção de filmes, vídeos, exposições e peças teatrais. Tudo muito bem combinado, na calada da noite, sem qualquer “regulação”.

Como sair dessa barafunda? Quem exatamente deve ser regulado? E a quem caberá a tal regulação? Serão, por acaso, usados os mesmos critérios que hoje definem as eleições? Que papel deve o governo representar na regulação? Alguém se dispõe a debater o assunto abertamente, deixando de lado, pelo menos por alguns instantes, suas predileções e conveniências?

Receio que só quando tivermos respostas concretas e coerentes para essas perguntas é que poderemos iniciar tal debate. Enquanto isso, cada um que se blogue à vontade.

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