No momento em que escrevo (19h30), estou sem poder sair de casa – digo, da casa onde trabalho, próximo à Avenida Paulista. O trânsito está parado, estações do metrô isoladas, e pela televisão já se vê que não há a menor condição de tráfego por ali. Imagens de helicóptero mostram o confronto entre manifestantes e policiais. Claro, exibem apenas uma parte da cena; é impossível cobrir todo o campo de ação. Mas vê-se que os dois lados usam armas. Os policiais procuram bloquear a passagem, usando balas de borracha e bombas de gás, e contra eles alguns manifestantes atiram rojões; alguns abrem os braços, como prisioneiros que (ainda) não são.

É a quarta vez em uma semana, e após as três anteriores a maioria dos comerciantes decidiu fechar as portas, com medo de ver contra si as temidas depredações. Assim vamos nos acostumando ao que alguns, ironicamente, chamam de “primavera brasileira”, aludindo aos movimentos dos últimos anos nos países árabes e, recuando mais ainda no tempo, à célebre Primavera de Praga, de 1968. As ruas da maior cidade brasileira foram transformadas em praça de guerra, ou algo bem próximo disso. A sensação de insegurança, que já vinha aumentando, chega agora ao seu nível máximo. Imagino o que estão sentindo as pessoas que estão dentro de carros e ônibus, parados em meio ao caos.

Duas perguntas básicas me ocorrem: por que se chegou a esse ponto? E a quem interessa esse conflito? Arrisco-me a responder. Para a primeira, não há uma causa específica. Certamente, o custo das passagens de ônibus não é uma delas. O aumento é bem inferior à inflação, foi anunciado ainda no final do ano passado e durante esse tempo não houve qualquer manifestação de protesto. O Movimento Passe Livre, que agora assume a autoria, era desconhecido até duas semanas atrás.

Se quisessem motivos para protestar, seus líderes teriam vários. Em dias de trânsito normal, uma pessoa que mora, por exemplo, em Santo Amaro e trabalha na região da Av. Paulista leva, em média, 70 minutos no trajeto de ônibus (um pouco menos de carro) – a distância é de aproximadamente 10km. O estado geral da frota é precário, as ruas cheias de buracos convidam a acidentes, os pontos de parada são ridiculamente desconfortáveis. Quem usa o metrô sabe ainda que estações recém-inauguradas já nasceram saturadas, incapazes de dar vazão à quantidade de usuários.

Os governantes com certeza estão devendo, e aí pode-se incluir as administrações municipal, estadual e federal, assim como os legislativos dos vários níveis, mais preocupados com a politicagem do dia-a-dia. Portanto, são parte do problema, e não da solução – aliás, muito longe disso. A economia do país, em baixa, com certeza também contribui para um clima de insatisfação, embora nenhum manifestante até agora o tenha mencionado.

Bem, mas a quem interessa o tumulto? Certamente, não ao atual prefeito nem ao governador. Menos ainda aos empresários, cujos negócios dependem de um mínimo de estabilidade, ou à polícia, que já tem trabalho suficiente para preencher seu tempo. Muito menos à população trabalhadora, que precisa de transporte público. Difícil imaginar que um usuário do metrô se disponha a depredar uma estação, da qual se serve todo dia; ou atear fogo a um ônibus, do qual depende para se locomover.

Por exclusão, caímos na política, aquela com “p” minúsculo que desde há alguns anos passou-se a praticar no Brasil. Se o caos não interessa a quem está no poder, só pode ser útil a quem está fora dele e sonha tomá-lo, ou voltar a ele. Uma leitura mais atenta às entrelinhas de artigos em jornais e revistas, além de notas em sites e blogs que tratam de política, autoriza avançar na hipótese. Todo mundo sabe que o governo Dilma, composto por facções que só têm em comum a luta pelo poder a qualquer preço, vem perdendo credibilidade a partir das idas e vindas da economia. Até integrantes da malfadada “base aliada” se queixam na imprensa do tratamento que recebem da presidente, criticada como “autoritária” e sem capacidade de diálogo. Nada disso ocorria durante o governo Lula.

A política de estímulo ao consumo, uma das marcas do ex-presidente, parece esgotada, enquanto caem os investimentos, sobe a inflação e a infraestrutura do país mostra seu estado mais do que precário. Nesse ritmo, há um grave risco de que Dilma chegue até as eleições de 2014 em posição de fragilidade. Sua candidatura à reeleição terá de ser definida até o início do ano; em caso de perigo, o PT e seus aliados só teriam uma alternativa: chamar Lula para o “sacrifício”. Com ou sem crise econômica, nove entre dez especialistas sabem que Lula é imbatível. Seria, então, a solução perfeita para fazer tudo voltar ao que era antes da “era Dilma”.

Por mais diabólico que pareça, a conclusão lógica é a de que os conflitos dos últimos dias só interessam a esse grupo: aqueles a quem Dilma não dá ouvidos. E que sonham, acima de tudo, com o poder a qualquer custo. Uma boa leitura, a esse respeito, é o site Brasil 247, dirigido pelo ex-ministro José Dirceu. Ali, nas entrelinhas, está desenhada toda a estratégia.

1 thought on “Por trás da primavera brasileira

  1. Toda vez é a mesma ladainha. Quando explode uma crise, os trabalhadores são chamados a dar sua cota de sacrifício para que o país volte a crescer e produzir, como se os ônibus lotados, o ritmo de trabalho e os salários de fome não fossem sacrifício suficiente. Agora começou de novo: a crise econômica internacional ainda nem chegou no Brasil, e a burguesia, o governo e os dirigentes sindicais vendidos já se uniram para convencer os trabalhadores de que não é hora de pedir aumento. Exibem uma infinidade de gráficos, tabelas e projeções sobre o déficit do orçamento, o movimento das bolsas e a inflação.

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