FinalCoverFoi com emoção que li, esta semana, o texto de despedida da equipe que fazia o jornal The City Paper, na cidade de Nashville (EUA). Não, nunca li nem vi esse jornal, não sei se era bom ou ruim (ao lado, a última capa). O que sei é que era distribuído gratuitamente aos moradores da cidade e que teve de fechar por falta de anúncios, sua única fonte de sustentação. Durou 13 anos. Nada muito diferente de milhares de jornais e revistas pelo mundo afora, nesta época de domínio das mídias digitais. O que me chamou a atenção foi a atitude da equipe, 16 pessoas que pelo visto estão agora desempregadas, e que assinam uma espécie de “manifesto” em favor da imprensa – não do jornal em si, mas das mídias (todas) em geral.

O texto, que reproduzo abaixo, é um primor de reflexão não apenas para jornalistas e profissionais de comunicação, mas para cidadãos do mundo inteiro. O que há de mais no fechamento de um jornal? Esta pergunta pode ocorrer a qualquer pessoa antenada com os tempos atuais. Pois o “manifesto” explica de modo exemplar o que há de mais. Não importa se você vive numa metrópole como São Paulo, Tóquio ou Nova York, ou numa pequena comunidade do interior; não importa se é rico ou pobre, de esquerda ou de direita, estudante ou operário, preto ou branco, católico, evangélico, judeu ou budista: todos (isso mesmo: todos) temos que lutar pela sobrevivência e pelo fortalecimento da imprensa.

Como deixam claro os jornalistas do City Paper, também não vem muito ao caso se estamos falando de grandes jornais ou revistas, com milhões de exemplares, ou pequenos periódicos distribuídos gratuitamente; grandes redes de rádio e TV, ou emissoras comunitárias; portais, blogs ou microblogs: todos são importantes, pois representam o que os colegas de Nashville definem, aliás brilhantemente, como “espelhos onde a cidade possa se ver refletida… janelas por onde os cidadãos possam ver o que é possível fazer.”

No Brasil de hoje, em particular, onde é comum o assassinato de jornalistas e onde políticos e empresários poderosos tentam calar jornais, rádios, sites etc., esse libelo em favor da mídia é mais do que oportuno. Não, uma sociedade não pode se calar diante do fechamento de jornais e revistas. Nem pode, como alguns ainda fazem, pedir que esta ou aquela publicação seja censurada. Somente publicações, emissoras e sites fortes e confiáveis, com jornalistas profissionais e conscientes de suas responsabilidades, podem fazer o trabalho, árduo, de fiscalizar os poderosos e defender os cidadãos. E, claro, antes de mais nada, estes precisam querer ser defendidos.

Por isso, acho que o “manifesto” precisa ser lido e compartilhado. Aproveitem.

 

Aqui chegamos ao fim.

Quando você estiver lendo isso, a equipe do City Paper provavelmente já terá sido desfeita, nossa última edição impressa e nosso website atualizado pela última vez.

Não dizemos isso para dramatizar. O mundo da mídia está mudando, e nosso modelo em particular – um  jornal impresso gratuito com uma página gratuita na internet – não conseguiu produzir receita suficiente para sobreviver. E, embora não estejamos felizes com isso, entendemos que esses são os riscos de ser jornalista no século 21.

Mas chega de falar de nós. Vamos falar de você.

Você vive numa cidade que vem tendo jornais concorrentes nos últimos dois séculos. Essas rivalidades têm sido boas para você. Deram-lhe a possibilidade de escolha. Talvez mais importante ainda, permitiram a competição, que melhora os jornais. Mesmo dentro da estrutura atual do City Paper – nossa equipe inteira cabe numa sala de reuniões, e algumas cadeiras ainda ficam vazias – temos uma força motivadora, que obriga nosso rival a descobrir notícias e publicar melhores reportagens.

Agora essa pressão não existirá mais.

Acreditamos apaixonadamente que os jornais – ou  suas versões online, não fazemos distinção nesse ponto – melhoram a vida das pessoas. Acreditamos que a cidade de Nashville precisa de mais jornalistas profissionais, não de menos. E, ao partirmos, pedimos que você apoie – na  verdade, que lute para – a sobrevivência dos jornais. Aqui estão as razões.

 

1.Jornais fiscalizam os governos

Um antigo parlamentar riu ao dizer a um membro de nossa equipe que os políticos locais provavelmente estão felizes (ainda que em segredo) com o fim do jornal. Mas isso não é surpresa. Menos meios de comunicação significam menos gente procurando notícias. Afinal, não se faz mais com menos. Faz-se menos com menos. A missão mais sagrada de um jornal é cobrir as atividades do governo, seus poderes, e a forma como aqueles investidos de poderes fazem uso deles. O governo é um órgão vivo, que respira. Muda seu comportamento e sua forma dependendo de quem aperta ou afrouxa o cerco. O governo também molda vidas, pavimenta ruas, contrata professores, persegue criminosos, fornece segurança e junta os cacos quando somos atingidos por algo como uma enchente.

Mas os governos, como as pessoas, podem cometer erros. Os jornais, mais do que qualquer outra fonte, têm a capacidade de pressionar os governos – e os funcionários públicos que os dirigem – a honrar suas responsabilidades perante as pessoas. Isso exige experiência, diligência, análise, contextualização – coisas impossíveis de se praticar simplesmente reproduzindo press-releases. Os melhores jornais fazem perguntas duras aos líderes políticos, assumindo um papel necessário de oposição, para que esses líderes se responsabilizem por seus atos.

Infelizmente, publicações que antes influenciavam os rumos do governo hoje estão enfraquecidas. As que restaram possuem bem menos repórteres para vigiar grandes orçamentos públicos e as decisões políticas que moldam a vida dos cidadãos.

Esse não é o único aspecto crucial em que o setor de mídia está se enfraquecendo. Na semana que vem, haverá apenas um repórter cobrindo a Justiça de Nashville em tempo integral. Temos uma corte distrital, um tribunal de apelações, uma corte criminal e uma suprema corte estadual. Há ainda um escritório do Ministério da Justiça, uma procuradoria, uma defensoria pública, um departamento de polícia metropolitana e um xerife. Não será possível cobrir todos eles.

Da mesma forma, o escritório da Associated Press – com uma equipe que cobre o estado inteiro – será reduzido a apenas quatro pessoas no final deste mês. Emissoras de rádio e TV fazem a sua parte, e possuem bons profissionais para isso. Mas essas mídias raramente têm espaço, profundidade e foco para fazer coberturas acuradas como um jornal diário faz.

Trata-se de defender o direito que o público tem de ser informado. Este jornal gastou milhares de dólares na Justiça, por exemplo, lutando pelo acesso a informações públicas de uma investigação sobre violações a recrutas da Academia Militar Montgomery Bell. A Associação Atlética da Escola Secundária do Tennessee lutou com unhas e dentes para manter esses dados em segredo – a bem da verdade, continua lutando. Outros órgãos ainda mantêm seus arquivos trancados, recusando-se a cedê-los a não ser por quantias astronômicas ou por ordem judicial.

A luta pela abertura desses arquivos e pela transparência do governo não é como cuidar de uma lavanderia suja. É um meio de entender como funcionam as instituições, quais são as suas prioridades e como tomam suas decisões – seja no gabinete de um portavoz ou numa sala cheia de fumaça. Significa a possibilidade de checar se a face de uma instituição pública é compatível com suas ações privadas.

A qualidade da cobertura jornalística de um governo vai além do espetáculo de uma reunião de conselho ou de uma audiência judicial. Numa grande cidade, em que a atividade política tem nível mais baixo do que aparenta, jornais servem para contar o que acontece de fato nessas reuniões e quais as motivações de cada decisão tomada.

Cobrir o governo é muito mais do que contar os votos numa sessão do Congresso ou anotar declarações bombásticas dos parlamentares. É uma missão pública, com um voto público de confiança para manter honestos o governo e aqueles que fazem parte dele.

 

2. Jornais informam a comunidade

Fundamentalmente, parafraseando o crítico de mídia Jay Rosen, a relação entre um jornal e seu leitor é: “Nós estávamos lá, vocês não estavam, então deixem-nos contar o que aconteceu.”

Nós estávamos na reunião do Conselho, e vocês não puderam estar, já que trabalham o dia todo e têm filhos pequenos. Portanto, deixem-nos contar o que eles fizeram e disseram e, se necessário, o que isso tudo realmente significa. Nós estávamos no jogo de futebol, e talvez vocês também estivessem lá, mas nós estivemos também no treino das equipes durante a semana, e nos vestiários depois da partida. Então, deixem-nos contar por que os times não jogaram bem.

Sabemos que você viu o chefe de uma gangue que foi preso, mas você sabia que ele tem um histórico de intimidar testemunhas? Vimos a pré-estreia do filme que será sucesso no verão, e você não sabe se vale a pena assistir, então deixe que nós contamos – melhor esperar para ver quando sair em vídeo.

A relação entre jornal e leitor é aquela mesma que acontece toda noite na mesa de jantar, só que com um jornalista que é pago para estar onde você não está, e assim mantê-lo informado sobre aquilo que você não pode ver.

O relacionamento depende de confiança. É legítimo que uma comunidade queira escolher os correspondentes que atuam como testemunhas e vigilantes da cidade, em seu benefício. Pois é assim que funciona. Repórteres são contratados, e os leitores devem determinar se eles podem ser confiáveis. Mais do que isso, devem determinar se a publicação que contratou aqueles repórteres pode ser confiável. Se não pode, por que ficar com ela?

Por isso é que uma cidade precisa de mais que um jornal – na verdade, mais do que dois. Jornais que competem entre si estão, na essência, lutando pela confiança dos leitores. E, se todos eles passarem no teste, melhor para os cidadãos.

Claro, na era digital, nunca falta informação para quem a procura. A proliferação de mídias independentes significa que qualquer pessoa pode ser um “correspondente”. Além disso, há um crescente fluxo de opiniões e observações sobre tudo que acontece em todo lugar. Isso permitiu valiosas contribuições: notícias de 140 caracteres, comentários em blogs com menos de 1.000 palavras, fotos no Instagram, vídeos no YouTube. Não há como negar que essa evolução resultou em ganhos para todos que querem se informar sobre o mundo em que vivemos. Mas, como num antigo provérbio, essa nova realidade dá aos cidadãos uma água contaminada, enquanto os jornais tentam oferecer-lhe água filtrada.

Quando bem empregada, essa água está livre de ruídos: os ruídos das corporações e das empresas de RP que tentam controlar as notícias; os ruídos dos políticos e de seus portavozes, que tentam moldar as notícias de acordo com seus interesses. Veículos de imprensa profissionais, de todos os tipos, muitas vezes falham nesse aspecto. A memória dos atentados de Boston nos vem à mente: naquelas primeiras 24 horas, os filtros estavam desligados, e os veículos de mídia amplificaram os ruídos, em vez de eliminá-los.

Mesmo assim, toda comunidade – seja uma cidade ou uma nação – necessita de um grupo de pessoas que mostre o que está pela frente. Ainda que cometam erros pelo caminho, quando várias fontes tentam descrever o que acontece, jornalistas profissionais têm a obrigação de mostrar o dia seguinte – analisar o que de fato ocorreu e explicar como e por que.

O tipo de gente que entra nesse mercado sabe o valor de estar bem informado. Alguém que trabalha num jornal tem a obsessão e a compulsão do dever cívico. Se você está lendo isso, talvez também seja um obcecado nesse sentido.

Mas, se as fontes consistentes e confiáveis de informação estão enfraquecidas, ou até mesmo perdidas, vale a pena repensar o tema: a cabine de votação numa eleição só tem poder, de fato, se for ocupada por cidadãos que sabem o que os candidatos disseram e fizeram, e o que pretendem fazer; os moradores de um bairro merecem contar com alguém que faça perguntas à polícia em seu nome.

A razão não é apenas o já conhecido “saber é poder”, embora isso também seja verdade; é que o conhecimento junta as pessoas, torna a comunidade mais forte, inclusive na hora de votar. Mesmo com todas as suas falhas, os jornais têm conseguido isso por mais de 100 anos. Nós acreditamos que jornalistas profissionais devem continuar a fazê-lo.

 

3.A obrigação continua

Então, como ficamos? No futuro, os cidadãos de Nashville terão de pagar pelas notícias de alguma maneira, se quiserem jornalismo. O modelo que sustentou a mídia no século 20 (publicidade) não parece mais capaz de mantê-la forte no século 21. O City Paper tem muitos leitores, aos quais seremos sempre gratos. Mas não fomos capazes de monetizar isso, atrair publicidade suficiente para pagar os repórteres que cobrem os tribunais, os conselhos políticos, os esportes, e que tentaram ajudar a compreender esta cidade. Se tivéssemos a resposta para esse dilema, provavelmente não estaríamos publicando nossa última edição. No entanto, nas últimas semanas desde que o fechamento foi anunciado, ficou claro que Nashville quer jornais. Emails, mensagens telefônicas e pessoas que nos paravam na rua deixaram evidente que desejam dar suporte a fontes de notícias. Portanto, o que você pode fazer?

Compre um jornal ou faça uma assinatura online. Nós assinamos The Tennessean. Não, não achamos que esse jornal venha sendo bom para a cidade, até porque pertence a uma grande corporação (a Gannett), cuja sede em Nova York recentemente demitiu 1.100 pessoas, passando a mensagem de que não se preocupa com Nashville. Além do mais, algumas coisas que eles publicam – por ex, press-releases de hospitais, que chamam de “seguro-saúde” – nos deixam furiosos. Mas, francamente, esse é o jornal diário que temos. The Tennessean ainda emprega jornalistas comprometidos em cobrir a cidade (importante ressaltar que nossos colegas do Nashville Post, todos jornalistas profissionais, ainda publicam um website diário, mantido por assinantes).

Dê apoio a um anunciante. Anunciantes são consumidores, exatamente como todos nós. Querem saber se estão gastando seu dinheiro de forma inteligente. Se você encontrar algo útil num anúncio, diga a eles onde o viu publicado. Pode parecer simples, mas é importante. Publicações gratuitas – como Nashville Scene, Nashville Ledger e TNReport – dependem de publicidade para sobreviver.

E, acima de tudo, apoie as mídias da sua cidade. Seja um jornal ou revista tradicional, um programa de rádio ou TV, um site ou qualquer coisa do gênero, as barreiras entre as mídias e o público estão desaparecendo. Se você usa as redes sociais, compartilhe as notícias que considera importantes. Se gosta ou não gosta de uma reportagem, os telefones e emails de quase todos os editores e repórteres são fáceis de obter. Se gostou de alguma coisa que leu, peça mais. Se não gostou, exija que melhorem.

Não importa o que irá mudar na mídia de Nashville, a única certeza que temos é que o City Paper não estará mais aí para cobrir e influenciar os acontecimentos. Mas hoje vemos uma cidade muito diferente daquela que existia 13 anos atrás, quando começamos. É um lugar gostoso, cheio de potencial, e de certa forma gostamos de pensar que tivemos algo a ver com isso. Pois aí está outra coisa que os jornais fazem. Eles não apenas erguem espelhos onde a cidade possa se ver refletida. O melhor que fazem é abrir janelas por onde os cidadãos possam ver o que é possível fazer.

Obrigado por lerem o City Paper. Foi uma honra contar as histórias de Nashville.

2 thoughts on “Por que precisamos da imprensa

  1. Orlando Barrozo, meu amigo, bela matéria, tocante e verdadeira. Precisamos de jornais e de jornalistas como você. Abraço!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *