Quando comentei aqui, semanas atrás, sobre as mortes de grandes nomes do jazz este ano em razão da COVID-19, não mencionei minha preocupação com o estado de saúde de Aldir Blanc, internado num hospital do Rio após ser diagnosticado com o vírus. Nesta 2a feira, acordei com a triste notícia: aos 73 anos, Aldir se foi, deixando a esposa Mari também infectada e internada.
Toda morte é triste – a de Moraes Moreira, mês passado, causou impacto por ter sido repentina, justamente ele que espalhou tanta alegria pelo país inteiro. Mas a de Aldir Blanc é particularmente significativa para minha geração. Foi ele o compositor brasileiro que mais se aproximou do gênio Noel Rosa no domínio das rimas, das gírias e do vocabulário do brasileiro médio, pobre e sem cultura formal. Tendo passado a infância em Vila Isabel, onde há uma estátua de Noel, sua família era de classe média e ele conseguiu formar-se em Medicina – que abandonou para se dedicar à música.
Soube como poucos unir erudição e sensibilidade (conhecia a fundo literatura, filosofia e psicanálise) para retratar personagens das ruas cariocas em versos que tinham ritmo próprio, quase dispensando as melodias de seus vários parceiros. Vejam este:
Uma dessas mulheres que um homem não esquece
Ex-atriz de TV, hoje é escriturária do INPS”
“Na rua do Tijolo, bloco 5, aquele de esquina,
Morou uma enfermeira com a chama vital de Ana Karenina.
Dirá um dodói que Tolstói era chuva demais pra tão pouca planta.
Ô trouxa, heroínas sem par podem brotar na Rússia, ou lá em Água Santa…”
(Lupicínica, gravada pelo autor no álbum Vida Noturna, 2005)
Convenhamos: rimar “esquece” com “INPS” e “dodói” com “Tolstói” não é pra qualquer um. Foi Noel quem ensinou essas coisas, quase 100 anos atrás, e discípulos como Chico Buarque e Billy Blanco aprenderam divinamente. Mas Aldir foi mais longe, era capaz de proezas como esta:
Sem teu amor, enlouqueci e ando dodói
Como Tarzan depois da gripe…”
Excelente texto, rico em detalhes, uma aula sobre um gênio da nossa música. Parabéns Orlando Barroso!