É quase inacreditável que mais de 200 horas de gravações dos Beatles, entre áudio e vídeo, tenham permanecido esquecidas num porão durante 30 anos. Mas é exatamente disso que trata o documentário Get Back, recém-lançado no Disney+, e já candidato a melhor lançamento do ano. Editado para 7 horas e 53 minutos, e dividido em três partes, o filme (ou seria “minissérie”?) espanta não só pela parte musical, mas também pelo fato de que som e imagem originais estão intactos, como se tivessem sido registrados no ano passado.

Mérito para o diretor neozelandês Peter Jackson (da trilogia Senhor dos Anéis), que comandou a operação toda envolvendo resgatar as fitas originais (sim, eram fitas magnéticas que se usava na época, portanto uma mídia analógica) e transformá-las num produto para streaming. Durante os últimos quatro anos, Jackson mergulhou fundo naquele material – na verdade, sobras de um documentário sobre a produção do álbum “Let It Be”, que viria a ser o último do quarteto.

Toda uma mitologia foi criada em torno desse disco, que chegou às lojas em maio de 1970, menos de um mês após Paul McCartney convocar uma entrevista coletiva em Londres para anunciar o fim dos Beatles. Por sua qualidade inferior à que os fãs estavam habituados, e com o documentário sombrio relatando as brigas entre os quatro durante a produção, “Lei It Be” entrou para a história como prova de que as afinidades e admirações mútuas entre eles haviam se acabado.

Mais de 50 anos depois, Get Back prova – com áudio e vídeo impecáveis – que a verdade era bem outra. Pelo que se sabia até agora, entre os dias 2 e 30 de janeiro de 1969 o cineasta inglês Michael Lindsay-Hogg rodou cerca de 27 horas em película, das quais aproveitou 90 minutos. Só que, no porão de um armazém em Amsterdam, alguém encontrou anos atrás dezenas de rolos de filmes e fitas contendo muito mais do que isso.

Segundo Jackson disse ao site americano Variety, eram 55 horas em vídeo e/ou película, além de 140 horas de áudio, que acabaram chegando às mãos de Giles Martin, filho do “quinto beatle”, o produtor George Martin, falecido em 2016. Giles havia sido incumbido pelo pai de cuidar do acervo dos estúdios Abbey Road, onde foram gravados quase todos os álbuns do grupo.

De posse daquele tesouro, Giles e seu colega Sam Okell começaram tentando restaurar as gravações de áudio. Quando Paul McCartney e Ringo Starr, os dois beatles sobreviventes, foram chamados para ver e ouvir as primeiras partes, começou a nascer o projeto Get Back.

Peter Jackson (foto), que assim como bilhões de pessoas mundo afora se confessa fã dos Beatles desde criancinha (nasceu em 1961), entrou no projeto bem mais tarde, com apoio de Paul, Ringo, Giles e dos filhos de George Harrison e John Lennon. Todos agora vêm rasgando elogios ao resultado. “Tenho certeza de que meu pai aprovaria”, disse Dhani Harrison. “Depois de ver o filme, fiquei ainda mais orgulhoso da história de nossa família”, comentou Julian Lennon.

De fato, qualquer fã dos Beatles (mas não só esses) irá se emocionar com as cenas de Get Back. Embora longo e repetitivo em alguns momentos, o documentário consegue passar a atmosfera do que é (ou era) um grupo de grandes artistas trabalhando. O espectador pode acompanhar o nascimento de jóias como Get Back, Let It Be, Don’t Let Me Down, Something e The Long And Winding Road, além dos primeiros acordes de canções que só vieram a público nos álbuns solos dos anos posteriores, como All Things Must Pass (George), Jealous Guy (John) e Another Day (Paul).

Closes e brincadeiras dos quatro no estúdio são captados com tal espontaneidade que, a certa altura, George Harrison pergunta Lindsay-Hogg: “Mas vocês estão gravando nossas conversas”? Sim, estavam, só que o material editado focou nas desavenças do quarteto, e não na amizade e afinidades musicais que permitiram criar tantas canções em menos de 30 dias. Daí por que o trabalho na época foi reprovado pelos quatro.

O documentário de Jackson termina com o célebre “concerto” (foto acima) no topo do edifício-sede da Apple, em 30 de janeiro de 1969, sob frio intenso, que agitou toda a vizinhança (aqui, um clipe). Nunca antes um artista tivera essa ousadia. O que não se sabia então é que era a última apresentação do grupo em público. Dois meses depois, eles voltavam ao estúdio para finalizar aquele que seria seu derradeiro trabalho como quarteto: Abbey Road, o famoso “disco da travessa na faixa de pedestres”.

O que fica claro após as quase oito horas do streaming no Disney+ é que, embora os Beatles tenham sido revolucionários no uso das tecnologias de áudio, só mesmo um cineasta perfeccionista e paciente como Peter Jackson seria capaz de resgatar aquele ambiente com imagens tão incrivelmente límpidas. Quatro rapazes com menos de 30 anos criando juntos a trilha sonora de tantas gerações.

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