Era uma manhã de 3a feira como tantas outras, dia quente e modorrento em São Paulo. No trânsito, liguei o rádio e estava tocando “Vento de Maio”, com Elis Regina; na sequência, “Trem Azul”… depois “Folhas Secas”, sempre naquela voz única. Achei estranho: por que tantas músicas de um mesmo artista numa manhã e numa mesma rádio? Ao final da terceira canção, entra a voz de Otavio Ceschi Jr., hoje famoso pelos programas rurais na TV: “Faleceu hoje em São Paulo a cantora Elis Regina”. Como assim? Para minha geração, Elis era daquelas que não podiam morrer nunca. Um ano antes, senti algo parecido com a notícia do assassinato de John Lennon. Por que alguém tão jovem e tão cheia de brilho sai de cena assim, de repente?

Nesta quarta-feira, aquela data sinistra volta à mente na passagem dos 40 anos sem Elis. Lembro que, confuso, dirigi pela cidade por um bom tempo sem rumo. Não havia celular nem internet, o jeito era procurar amigos que tivessem mais notícias para, enfim, chorarmos juntos. Ao longo do dia, o velório cheio de artistas no Teatro Bandeirantes, onde ela brilhara tantas vezes; no dia seguinte, o comboio atravessando a cidade rumo ao Cemitério do Morumbi, seguido por mais de 100 mil pessoas.

Elis Regina era (é) dessas figuras que vêm ao mundo para abalar as estruturas, como se dizia na época. Nunca houve nem haverá alguém igual. Estrela de rádio e TV em Porto Alegre aos 15 anos, estrela nas boates do Rio aos 18, estrela em rede nacional de TV aos 20, estrela incomparável em discos e shows até os 36, quando sua voz se calou.

 

 

Aos 20, comandava seu próprio programa na TV Record (O Fino da Bossa), que – muito além do fenômeno bossa nova sugerido no título – apresentou ao país toda uma nova geração de craques: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Toquinho, Paulinho da Viola, Marcos Valle, Baden Powell… Bossanovistas como Tom Jobim, Vinicius, Johnny Alf e Carlos Lyra apareceram algumas vezes, já que pela primeira vez a televisão se abria à música brasileira.

O que se viu nos anos seguintes entrou para a história como o mais importante movimento de transformação cultural do país, tendo sempre Elis na primeira fila. Foi ela quem primeiro gravou Milton Nascimento, João Bosco/Aldir Blanc, Ivan Lins e Belchior, além de ter resgatado veteranos esquecidos como Adoniran Barbosa e Nelson Cavaquinho. E são dela alguns dos discos mais icônicos do período (vejam no final).

 

 

Quem a viu no palco pode confirmar também que aquilo era mesmo um furacão, apelido que ganhou, uma energia que impulsionava os músicos a darem o seu melhor – mesmo porque Elis exigia isso, sempre. Seu show Falso Brilhante (1976) entrou para a galeria dos grandes momentos do teatro musical, confirmando que, além de excepcional cantora, era também excelente atriz e dançarina.

Não são poucos os grandes artistas internacionais que a reverenciam: Dianne Reeves, Johnny Mathis, Diana Krall… a própria Ella Fitzgerald, maior de todas, a encheu de elogios em entrevistas quando lançou seu álbum Ella Abraça Jobim (1981); Ella, por sinal, tem uma gravação incrível de 1972 emulando Elis em sua versão de Madalena, de Ivan Lins, cantada em português (ouçam aqui). Anos atrás, quando entrevistei a ótima Jane Monheit em São Paulo, ela incluiu Elis entre suas principais influências, ao lado de Ella, Sinatra e Billie Holiday.

 

 

Elis já era estrelíssima em 1971, quando conheceu o maestro e pianista Cesar Camargo Mariano, com quem se casou e que passou a ser seu arranjador, produtor e acompanhante. Cesar conseguiu extrair ainda mais dela em termos musicais, ajudando a controlar os exageros e a atingir notas inimagináveis. Mais do que isso, Elis aperfeiçoou o raro dom de incluir a emoção em cada frase, exprimindo como ninguém o sentido das letras, algo que até os gringos percebem quando a comparam a Billie Holiday e Janis Joplin.

Não fosse a pandemia, e não fosse este um país tão pobre de memória e de respeito a seus artistas, este mês de janeiro estaria forrado de homenagens em livros, vídeos, shows, exposições e tudo mais sobre Elis Regina. Nunca uma estrela brilhou tanto em nossa música (aliás, brilha até hoje, como comprovam as dezenas de coletâneas lançadas em streaming nos últimos anos).

A seguir, uma seleção pessoal dos melhores discos de Elis (todos disponíveis no Spotify):

Samba Eu Canto Assim (1965) – Inclui Reza, Menino das Laranjas e Preciso Aprender a Ser Só.

Esse Mundo é Meu (1965)O Cantador, Deixa, Canto de Ossanha, Rosa Morena e Noite dos Mascarados (esta em seu único dueto com o autor, Chico Buarque).

Dois na Bossa (1965-67) – Série de três álbuns tirados do programa O Fino da Bossa, ao lado de Jair Rodrigues: Terra de Ninguém, Arrastão, Louvação e diversos medleys com trechos de inúmeras obras-primas.

Elis (1966) – Carinhoso, Lunik 9, Pra Dizer Adeus e Canção do Sal.

Como e Porque (1969) – Aquarela do Brasil, Vera Cruz, O Barquinho, O Sonho.

Aquarela do Brasil (1969) – Disco em dueto com o gaitista belga Toots Thielemans, inclui Wave, Canto de Ossanha, Honeysuckle Rose e a faixa-título.

Elis (1972) – Talvez seu melhor disco: Bala com Bala, Casa no Campo, Mucuripe, Atrás da Porta, 20 Anos Blue e sua primeira versão de Águas de Março.

Elis (1973) – Cabaré, Oriente, Folhas Secas, Agnus Sei.

Elis (1974) – Ponta de Areia, Dois pra lá Dois pra Cá, Travessia.

Elis & Tom (1974) – Candidato a melhor disco brasileiro de todos os tempos, destaca o célebre dueto em Águas de Março, além de Inútil Paisagem, Só Tinha de Ser com Você, Corcovado, Triste, Chovendo na Roseira e Por Toda a Minha Vida.

Falso Brilhante (1976)Fascinação, Como Nossos Pais, Gracias a la Vida e Tatuagem.

Transversal do Tempo (1978) – Show ao vivo que inclui Saudosa Maloca, Sinal Fechado, Cartomante e Querelas do Brasil.

Essa Mulher (1979) – Disco irregular, mas que traz duas obras-primas: As Aparências Enganam e a histórica O Bêbado e a Equilibrista.

No Fino da Bossa (1994) – Coletânea que saiu em três CDs com trechos de apresentações no programa de TV, destacando duetos com Gilberto Gil, Dorival Caymmi, Baden Powell, Wilson Simonal, Jorge Benjor, Edu Lobo, Elza Soares, Adoniran Barbosa e Agostinho dos Santos.

Para encerrar, vale a pena conhecer (ou reviver) o áudio do show realizado por Elis no celebrado Olympia de Paris, em 1968, cantando a versão em francês do Samba da Bênção, de Baden Powell e Vinicius de Morais. Este é o link: https://www.youtube.com/watch?v=MpfSoLn7nYk.

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