Com o brilhantismo e o alto nível de detalhamento que lhe é peculiar, a revista Wired – hoje a mais importante publicação do mundo sobre tecnologia – fez um amplo levantamento sobre algo que nós, brasileiros, conhecemos bem: a irresponsabilidade (misturada com incompetência e altas doses de demagogia) dos governantes. No caso, estamos falando do país mais rico e tecnologicamente avançado do mundo, cobrindo os presidentes desde Bill Clinton, que governou entre 1992 e 1999. Mas poderia muito bem ser transcrito para os nossos presidentes, só que aí teríamos que remontar, pelo menos, até o período da ditadura militar.

O texto é longo, impossível reproduzir aqui na íntegra, por isso deixo o link para quem quiser aproveitar a quarentena e tentar entender como a saúde pública é tratada pelos políticos. Destaco apenas alguns pontos que ilustram bem a dura realidade: tudo que os EUA (e o mundo) estão passando hoje com a COVID-19 poderia, sim, ter sido evitado. Este vídeo, aliás, fornece boas pistas sobre por que isso aconteceu.
O levantamento da Wired começa mostrando que, em 1996, a Casa Branca divulgou um plano do presidente Clinton para criar um “sistema de vigilância mundial contra doenças infecciosas”. Em 2005, já na administração Bush, surgia um outro plano intitulado Cenário de Pandemia, descrevendo uma “gripe epidêmica movendo-se de uma pequena vila na Ásia para os EUA”, onde causaria “pânico e cerca de 1,9 milhão de mortes”.
Naquele mesmo ano, o secretário de Saúde do país, Michael Leavitt, falava sobre a ameaça de uma doença global chamada “pandemia”: “Ninguém no mundo está totalmente preparado, mas nós estamos melhor preparados hoje do que ontem. E estaremos melhor preparados amanhã”.
No final de 2005, na proposta de orçamento para o ano seguinte, o Congresso dos EUA informava  sobre os “possíveis efeitos macroeconômicos de uma potencial pandemia de gripe”. O documento detalhava que hospitais e clínicas ficariam sobrecarregados e que profissionais de saúde estariam expostos ao novo vírus, exigindo que doenças não urgentes teriam que ser deixadas em segundo plano.
Já na era Obama, as preocupações continuaram, mas com poucas ações práticas. Relatório da CIA, em fevereiro de 2009 (um mês após o presidente assumir), apontava a possibilidade de “um vírus de gripe altamente letal provocar severa pandemia transnacional”. Até o Banco Mundial advertia que poderia ser algo igual ou pior que a gripe espanhola de 1918, matando 71 milhões de pessoas pelo mundo afora.
Novos informes, cada vez mais graves, foram divulgados praticamente a cada ano do governo Obama (aqui, uma análise dos erros do ex-presidente). Em 2009, quando o vírus H1N1 atingiu os EUA, o Departamento de Saúde emitiu alerta de que era necessário aproveitar aquela experiência para buscar novos avanços tecnológicos a fim de enfrentar um outro vírus de grupe ainda mais forte. O mesmo tipo de alerta foi feito em 2014, na época do ebola, que atingiu a África.
Em janeiro de 2017, pouco antes da posse do presidente Trump, seu principal assessor na área de saúde, Anthony Fauci, divulgou documento intitulado “Preparativos para a Pandemia”, afirmando não ter dúvidas de que estava chegando uma “epidemia surpresa”. Vejam o que Fauci disse recentemente.
Desde então, vários especialistas americanos publicaram artigos e fizeram conferências chamando atenção para o mesmo perigo. Os alertas agora partiam também de políticos de congressistas e de gurus como Bill Gates, além da Organização Mundial da Saúde (OMS), a maioria criticando o governo Trump por ter cortado programas já existentes que visavam preparar o país para enfrentar a crise.
 
 
Numa entrevista em abril de 2018, dois meses depois de se encontrar pessoalmente com Trump, Gates acusava o governo americano de não se preparar para uma epidemia que tinha potencial de matar 33 milhões de pessoas em todo o mundo. Gates temia até por um “ataque bioterrorista” e enfatizava que os EUA já deveriam estar investindo em vacinas universais, que poderiam proteger contra todos ou quase todos os tipos de gripe (vejam aqui).
Os alertas prosseguiram, partindo de várias fontes, nos dois últimos anos. Mas até o último dia 13 de março a administração Trump ainda encarava a COVID-19 como um problema da Ásia e da Europa, anunciando o fechamento das fronteiras para visitantes europeus. Enquanto isso, como se sabe agora, o vírus já se espalhava dentro dos EUA, onde as primeiras medidas de isolamento só foram tomadas no final de março.
Como mostra este gráfico, a primeira morte confirmada por coronavírus foi anunciada na China em 11 de janeiro (sabe-se que lá as notícias foram retidas pelo governo durante um bom tempo); e o primeiro caso de contágio dentro dos EUA foi em 20 de janeiro. Ou seja, o governo Trump levou quase dois meses para começar a tratar a sério o perigo.
Hoje, os EUA são o epicentro da epidemia, somando mais de 700 mil casos confirmados – e batendo um trágico recorde mundial com 40 mil mortos até agora.

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